Black Bird (2022), minissérie policial que a Apple TV+ lançou neste mês — o terceiro dos seis episódios foi ao ar na sexta-feira (15) —, reúne alguns elementos comuns na recente produção dos canais de TV e das plataformas de streaming estadunidenses.
Como American Crime Story: Impeachment, A Cidade É Nossa, Dopesick, The Dropout, Inventando Anna, Pam & Tommy, The Staircase e Tokyo Vice, é mais uma versão ficcional de uma rumorosa história que envolveu a polícia, a Justiça e a imprensa.
Por consequência, a exemplo de todos os títulos citados acima, Black Bird empreende uma (curta) viagem ao passado — na maior parte do tempo, estamos na metade dos anos 1990.
O elenco, por sua vez, é formado por atores indicados ao Oscar ou ao Globo de Ouro. Depois de Clive Owen (Impeachment), Michael Keaton, Peter Sarsgaard e Michael Stuhlbarg (Dopesick), Amanda Seyfried e William H. Macy (The Dropout), Colin Firth, Toni Collette e Juliette Binoche (The Staircase, que também conta com Stuhlbarg), agora é a vez de Taron Egerton, Greg Kinnear e Ray Liotta. Egerton disputou o Globo de Ouro, o Bafta e o troféu do Sindicato dos Atores dos EUA por encarnar Elton John em Rocketman (2019). Kinnear concorreu ao Oscar de coadjuvante por Melhor É Impossível (1997). E Liotta competiu no Globo de Ouro de coadjuvante por Totalmente Selvagem (1986) — em Black Bird, o eterno Henry Hill de Os Bons Companheiros (1990) fez seu último papel antes de morrer, no dia 26 de maio, aos 67 anos.
Também se pode enquadrar Black Bird em um nicho que não é exclusivo nem dos Estados Unidos, nem das últimas temporadas: o das séries que nos incitam à afeição por criminosos, como Boardwalk Empire (2010-2014), Breaking Bad (2008-2013), La Casa de Papel (2017-2021), Dexter (2006-2013), Família Soprano (1999-2007), Lista Negra (The Blacklist, 2013-), Ozark (2017-2022) e Peaky Blinders (2013-2022).
Mas qualquer impressão de déjà vu se dissipa rapidamente. Black Bird é a nova sensação entre as minisséries policiais.
Parte do encantamento deve-se à estratégia de distribuição: depois de liberar os primeiros dois episódios na estreia, a Apple TV+ passou a lançar um capítulo por semana, permitindo ao público o prazer da expectativa.
Outra parte consiste na trama, por vezes tão mirabolante que nem parece ser baseada em uma história real — como dizia o escritor Mark Twain (1835-1910), a verdade é mais estranha do que a ficção.
Com músculos e carisma bombados, Taron Egerton interpreta James Keene, o Jimmy, um filho de policial (Ray Liotta) e um promissor jogador de futebol americano que enveredou para o mundo do crime. Mas com sucesso: como traficante, tornou-se dono de um pequeno império em Chicago. Ele acaba preso em uma operação do FBI, a polícia federal dos EUA, da qual participa a agente Lauren McCauley, vivida por Sepideh Moafi, a Gigi de The L World: Generation Q (2019-). Para escapar de uma sentença longa, aceita um acordo, só que também é acusado da posse ilegal de muitas armas de fogo: a pena aumenta para 120 meses, longos 10 anos. E sem fiança.
Entrementes, vamos acompanhar o surgimento dos outros dois personagens importantes da minissérie. Um é o detetive Brian Miller (Greg Kinnear), que investiga o desaparecimento — e provável assassinato — de jovens mulheres. O outro é o principal suspeito, Larry DeWayne Hall, um tipo excêntrico que viaja pelo país para participar de reencenações da Guerra Civil e que, junto a alguns policiais, tem fama de ser um "serial confessor" — ou seja, alguém com compulsão de confessar crimes.
Esse personagem é encarnado por um dos mais interessantes atores surgidos nos últimos tempos: Paul Walter Hauser, 35 anos. Seja como coadjuvante — Eu, Tonya (2017), Infiltrado na Klan (2018), Cruella (2021), a série Cobra Kai (2019-) —, seja como protagonista (O Caso Richard Jewell, de 2019), ele sempre se destaca. E não só por ser um dos poucos tipos roliços nas produções hollywoodianas. Em Black Bird, a combinação da sua fisicalidade com a voz estridente e as costeletas suíças do personagem transformam Larry em um sujeito ora bizarro, ora patético, ora perigoso.
O responsável por cruzar essas duas narrativas, a de Jimmy e a de Larry, é o escritor Dennis Lehane, que desenvolveu Black Bird a partir do livro autobiográfico In with the Devil (2011), um depoimento de James Keene a Hillel Levin. Bostoniano de 56 anos, o romancista virou nome frequente em filmes e séries policiais. Suas obras inspiraram títulos como Sobre Meninos e Lobos (2003), de Clint Eastwood, Medo da Verdade (2007) e A Lei da Noite (2016), ambos de Ben Affleck, Ilha do Medo (2010), de Martin Scorsese, e A Entrega (2014), de Michaël R. Roskam — diretor de três episódios da minissérie.
Percebe-se a mão de Lehane em Black Bird. Nos seus romances policiais, não existe certo ou errado. Existe certo "e" errado, tudo junto e misturado, uma zona nebulosa, cinzenta, povoada por indagações como: você entregaria seu cônjuge se descobrisse que ele cometeu um crime? Devemos seguir a lei ou a Justiça? Em nome de ser aceito pelos outros, o quanto podemos nos esconder de nós mesmos? Como expulsar fantasmas interiores sem que eles apavorem as outras pessoas? Melhor viver como um monstro ou morrer como um herói?
Em Black Bird, muitos dos personagens trafegam por esse território borralhento, onde o tempo todo são confrontados por impasses éticos e morais — em entrevista por e-mail à época do lançamento no Brasil do livro Estrada Escura, em 2012, Lehane confessou: "Tenho uma obsessão inegável com o que um amigo meu classificou como o 'dilema irreconciliável', o problema que nunca poderá ser resolvido de modo a satisfazer a todos". É praticamente o resumo da situação de Jimmy a partir do momento em que lhe é confiada uma missão que pode significar a sua liberdade. Ou a sua danação.