Lançada pela Netflix na última sexta-feira (27), a quarta temporada faz saltar aos olhos um grande problema de Stranger Things.
Não, não estou falando do culto nostálgico aos anos 1980 que, na verdade, constitui um dos charmes da série criada pelos gêmeos Matt e Ross Duffer. Os chamados Duffer Brothers costuraram uma vistosa colcha de retalhos, pegando pedaços de filmes como O Enigma de Outro Mundo (1982), E.T.: O Extraterrestre (1982), Poltergeist: O Fenômeno (1982), Os Caça-Fantasmas (1984), Chamas da Vingança (1984), Os Goonies (1985), Conta Comigo (1986) e Akira (1988), resgatando músicas como The Ghost in You (Psychedelic Furs, 1981), Africa (Toto, 1982), Should I Stay or Should I Go (The Clash, 1982), Elegia (New Order, 1985) e Running Up that Hill (Kate Bush, 1985) e destacando passatempos como o RPG Dungeons & Dragons e peças de memorabilia como os walkie-talkies.
Também não é problemático que o próprio roteiro pareça reciclar as temporadas anteriores, porque os Duffer acrescentam elementos suficientemente distintivos. Há uma nova ameaça vinda do Mundo Invertido: Vecna, uma criatura sobrenatural que invade mentes e leva as pessoas à morte de maneira cruel em poucos dias — vale avisar os pais: Stranger Things 4 está muito mais próxima do horror do que da ficção científica. Há uma nova conspiração envolvendo Eleven (Millie Bobby Brown), agora, morando e estudando na Califórnia, também às voltas com a sua falta de traquejo no convívio social, com a distância do namorado, Mike (Finn Wolfhard), que ficou na cidadezinha de Hawkins, no Estado de Indiana, e com o bullying.
E há, novamente, a necessidade de o grupo de amigos se unir para enfrentar o mal, só que desta vez eles também precisam encarar dramas típicos da adolescência, incluindo dilemas de identificação e aceitação (ser nerd versus ser popular) e o despertar da sexualidade (outra vez, vale avisar os pais: não há cenas de sexo, nem mesmo momentos românticos, embora haja diálogos sobre "peitos").
O grande problema tampouco é o grande crescimento dos atores, que não é acompanhado pelo dos personagens. A história se passa seis meses após a Batalha de Starcourt, o quebra-pau de humanos contra Demogorgons no shopping que fechou a terceira temporada deixando um rastro de destruição em Hawkins. Na vida real, foram quase três anos de intervalo. A discrepância se faz notar, por exemplo, em Caleb McLaughlin, hoje com 20 anos e bem mais encorpado do que deveria estar Lucas Sinclair, aluno recém-ingresso no Ensino Médio.
E tudo bem que a trama com o xerife Hopper (David Harbour) na Rússia pareça girar — violentamente — sem sair do lugar, apenas alongando a duração dos episódios: os sete já lançados têm em média 75 minutos, com uma hora e 40 minutos no sétimo (os dois últimos vão ao ar em 1º de julho, um com 85 minutos e o final com duas horas e meia). Pelo menos podemos passar tempo na companhia do carismático personagem, pelo menos podemos saber mais do seu trágico passado.
Falando em trágico passado, investigações conduzidas pela jornalista Nancy Wheeler (Natalia Dyer) na companhia de Robin (Maya Hawke) vão introduzir um sinistro personagem e conectar Stranger Things a outros ícones do cinema dos anos 1980 e dos filmes de terror — mas pouparei o leitor de spoilers.
Aliás, tem a ver com spoilers o grande problema de Strangers Things.
Há mais pontos negativos do que positivos no lançamento dos sete episódios em um pacote só. Claro, é bacana para quem gosta e quem pode maratonar. Mas quem não tem paciência ou tempo corre mais riscos de spoilers nas redes sociais e mesmo nos sites jornalísticos.
Faz parte do jogo, eu sei, e vê um capítulo atrás do outro quem quer — os demais podem assistir a conta-gotas. Ainda assim, acho que vale discutir essa estratégia, que espelha uma sociedade regida pela pressa, pelo instantâneo.
Chega a ser contraditório que uma produção nostálgica e com episódios tão longos como Stranger Things esteja inserida na cadeia de séries fast-food da Netflix, feitas para o consumo imediato. A voracidade prejudica a digestão: não refletimos sobre o que estamos vendo. A sensação de saciedade acaba rapidamente também: daqui a alguns dias já nem lembramos mais do prato que foi servido, ao contrário do que acontece com os seriados exibidos à moda antiga — o cardápio renovado a cada semana atiça nossa curiosidade.
Perde-se nutrientes intelectuais e emocionais. Assista à quarta temporada de Stranger Things e faça um exercício de imaginação: que gostoso seria termos sete dias para repercutir entre os amigos o menu dos irmãos Duffer, especulando sobre seus ingredientes misteriosos; que apetitoso seria passarmos uma semana inteira com o coração na mão, sem sabermos o que vai sair daquela panela cozinhada em fogo altíssimo ao final de cada episódio. Eis um prazer de que somos privados: o prazer da expectativa.