Supernatureza, stand-up do comediante inglês Ricky Gervais recém-lançado pela Netflix, suscita uma polêmica complexa por sua subjetividade. Qual é o limite do humor? Quando uma piada se torna ofensiva? Dá para fazer rir falando sobre Hitler, pedofilia, aids, pessoas trans e um bebê morto?
São perguntas que meu amigo e colega David Coimbra (1962-2022) adoraria debater, na condição de alguém que defendia a liberdade de expressão e que não tinha medo de mexer em vespeiros — além de ser um exemplo notório de bom humor (sempre que lembro dele, lembro do sorriso dele, da risada dele). São perguntas que vêm à mente do espectador e à boca do humorista de 60 anos, famoso por criar e estrelar as séries The Office (que depois ganhou uma versão nos Estados Unidos protagonizada por Steve Carell) e After Life e por apresentar a premiação do Globo de Ouro — na última das cinco vezes, em 2020, atacou o telhado de vidro dos astros de Hollywood que se consideram politicamente engajados, mas que trabalham para empresas "comparáveis ao Estado Islâmico".
Logo no início de Supernatureza, Gervais trata de discutir o próprio ofício, como fizera em Humanidade (2018), igualmente disponível na Netflix. No show anterior, em meio a piadas sobre o Holocausto, estupro e a transformação de Bruce Jenner, ex-atleta olímpico e ex-padrasto de Kim Kardashian, em Caitlyn Jenner, o artista relembrou que o humor é um antídoto contra o peso da vida — "Todos vamos morrer, então, vamos dar risada" (consigo ver o David dizendo isso!) —, afirmou que há diferenças cruciais entre o tema e o alvo de uma gozação e criticou a "enorme capacidade das pessoas de se sentirem ofendidas":
— Uma piada sobre uma coisa ruim não é tão ruim quanto a coisa, nem é necessariamente a favor dessa coisa. Pode ser contra. Depende da piada. É preciso entender o contexto. Rir de uma coisa ruim não o torna uma pessoa ruim.
Com esse mesmo didatismo, Gervais abre o novo stand-up dando uma definição de ironia:
— Eu falarei algo que não acredito só pelo efeito cômico, e vocês vão rir da parte errada, porque sabem qual é a coisa certa. (...) Odeio quando dizem: "Essa piada é ofensiva". Não, você a achou ofensiva. Sentimentos são pessoais.
Para uns, trata-se de um salvo-conduto mútuo: Ricky Gervais pode tirar sarro do que quiser, suas reflexões vão preparando o terreno para as barbaridades ditas, e suas risadas — sejam autênticas ou ensaiadas —, como que reconhecendo a pisada em um campo minado, potencializam o distanciamento: estamos longe o suficiente da parte errada para rir dela. Para outros, no entanto, uma piada transfóbica, por exemplo, será sempre um ato de transfobia.
A propósito, assim que Supernatureza estreou, na terça-feira passada (24), a Netflix foi acusada, na imprensa e nas redes sociais, por reincidência. Afinal, em outubro de 2021 a plataforma lançou Dave Chappelle: Encerramento, um show de humor homofóbico, transfóbico e misógino que chegou a motivar uma greve de empregados da gigante do streaming. Agora, Gervais diz coisas do tipo:
— Eu amo as novas mulheres. Elas são ótimas, não são? Essas novas, que temos visto por aí, com barba e pau. As antigas dizem: "Ah, querem usar nossos banheiros". Por que elas não deveriam usar seus banheiros? "São para mulheres!". Elas são mulheres, veja os pronomes delas! Qual parte dessas pessoas não é mulher? "Bem, o pênis dele." O pênis dela, sua preconceituosa! "E se ele me estuprar?" E se ela te estuprar!
Não faltaram queixas de usuários da Netflix e comparações do comediante inglês com o estadunidense. Eu acho que Chappelle, embora também aborde a herança nefasta da escravidão e o racismo da polícia e da sociedade nos EUA, concentra o foco nos homossexuais, na comunidade trans e no movimento feminista. São as velhas piadas sobre minorias, sobre grupos que convivem com a exclusão e o preconceito. A intolerância é travestida de deboche. Gervais é, digamos, mais democrático:
— Aceito qualquer ponto de vista para fazer a piada mais engraçada. Vou fingir ser de direita. Vou fingir ser de esquerda. Vou fingir ser inteligente. Vou fingir ser estúpido. (...) Falo sobre aids, fome, câncer, Holocausto, estupro, pedofilia. Mas não, a única coisa com a qual você não deve brincar é com a política identitária. A única coisa com que você nunca deve brincar é a questão trans. Essas pessoas só querem ser tratadas igualmente. Concordo. Por isso as incluo.
E, de fato, as piadas sobre trans estão lá e podem chocar, ofender, magoar. Assim como alguém pode achar pesado demais fazer humor sobre um peido no enterro de um bebê. Ou afrontoso o momento em que Gervais se considera membro de uma minoria ("Eu sou um heterossexual branco multimilionário, há menos de 1% de nós") e se compara com um ícone da luta dos negros por direitos civis ("Eu sou como Rosa Parks, só que lutei pelo direito de nunca sentar em um ônibus"). E há quem vá ficar muito sério comigo ao saber que eu ri à beça em uma piada que envolve... anões.