Eu tive o prazer de trabalhar bem perto do David Coimbra, que desde esta sexta-feira (27) está fisicamente longe de nós. Mais do que isso, eu tive a honra de ser sempre estimulado e valorizado pelo David.
Isso desde os tempos de Esporte (a editoria na qual trabalhei durante anos e à qual costumo me juntar nas Copas do Mundo e nas Olimpíadas, quando muitas vezes recebi a mais deliciosa das tarefas: editar os textos saborosos do David e, quando preciso, encarar o desafio de achar alguma palavrinha que pudesse ser cortada sem destruir o encadeamento das ideias e o ritmo da prosa) e de esporte (o futebol que jogávamos no meio de semana ou nas tardes de sábado) até a minha fase como colunista de filmes e séries. Volta e meia ele me citava nas crônicas dele, dizendo que, por recomendação minha, havia assistido a alguma coisa, como O Golpista do Tinder. Mas o tom era quase sempre de gozação — escreveu um dia que as mulheres e eu "A-MAM musicais e filmes de amor". Daí, também brincando, eu retrucava quando nossas vozes se encontravam no programa Timeline, da Rádio Gaúcha.
O David sempre incentivou, seja na cobertura da Eurocopa de 2000 — uma grande alegria era saber que minha página seria colorida (naquela época, nem todas eram) — ou mesmo quando eu errava um gol feito.
Aliás, um desses não gols acabou eternizado pelas palavras do David.
Foi no dia 29 de setembro de 2001. O título da crônica publicada em ZH era bem forte, taxativo, como característico do autor: "O gol mais perdido de todos". Reproduzo o texto aqui, como minha homenagem e meu agradecimento a este colega e amigo:
"Dominei a bola no lado esquerdo da quadra e vi o Ticiano sozinho diante do gol. Sozinho não é força de expressão, é sozinho mesmo, não havia ninguém por perto. Pudera, o goleiro era o Carlos Moreira, que não resiste a uma discussão histórica ou cultural ou musical ou de qualquer outra espécie, e estava a metros de distância, fazendo uma preleção sobre os persas ao aflito Serginho Villar. Por que alguém discorreria sobre os persas no meio de um jogo de futsal? Se você conhecesse o Carlos Moreira não faria esta pergunta. Um dia vou escrever mais sobre o Carlos Moreira e você vai compreender, e se espantar.
O importante agora é que passei a bola para o Ticiano. Não foi um passe complicado, simplesmente estendi a bola, rasteira, seis ou sete metros à frente, na diagonal. Ela deslizou até o Ticiano, que se apoiou no pé esquerdo e adiantou o direito, numa tentativa de matá-la. Vã tentativa. A bola vinha suave, mas, ao encostar no pé do Ticiano, como que levou um choque. Saltou, arrepiada, a uma altura de uns 30 centímetros.
O Ticiano, ante aquela rebelião, tomou uma atitude: escorou-a com o joelho, na expectativa de enfim domá-la. Talvez a rótula do Ticiano seja pontuda, talvez tenha um ângulo torto, sei lá, só sei que ela se revoltou ainda mais e, feito uma jiboia com catapora, enroscou-se nas pernas do Ticiano como se quisesse se coçar nelas. O Ticiano, a esta altura a metro e meio da linha do gol, caiu de joelhos e de joelhos prosseguiu na sua luta comovente pela submissão da bola. Mas ela era solerte, ela era manhosa, e continuou negaceando, continuou maltratando o Ticiano, dançando entre seus joelhos, correndo ora para a direita, ora para a esquerda, e o Ticiano, de gatinhas, avançando 10 centímetros, 20 centímetros, a linha do gol cada vez mais perto, e então o Carlos Moreira percebeu o lance, lá de longe, e esqueceu os persas, e veio correndo, e o Ticiano avançando, o gol a um metro, e o Moreira cada vez mais perto, e o Ticiano, de quatro, a meio metro do gol, e o Moreira correndo, puf, puf, e o Ticiano gemendo, 40 centímetros, 30 centímetros, 20 centímetros, e o Moreira chegou, e colheu a bola do solo, e levou-a ao peito e o Ticiano cobriu o rosto com as mãos, era o fim, era o opróbrio.
Nunca um gol tão feito foi perdido de forma tão bisonha. Não falem mal do Rodrigo Gral".