Há pelo menos cinco pontos em comum entre A Cidade É Nossa (We Own this City) e A Escada (The Staircase). Ambas estão em cartaz na mesma plataforma de streaming, a HBO Max. Ambas são minisséries baseadas em histórias reais que envolvem a polícia e a Justiça dos Estados Unidos. Ambas contam com duas dezenas de coadjuvantes gravitando em torno de um protagonista sobre o qual pesam graves acusações — com a diferença crucial de que, no primeiro caso, todos sabemos o quão culpado é esse personagem; no segundo, talvez nunca saibamos. Ambas vão e voltam no tempo, exigindo concentração do espectador e atenção às datas e aos detalhes, como a cor dos cabelos. E ambas são beneficiadas pela estratégia de distribuição à moda antiga: os capítulos são lançados um por semana.
Essa tática pode frustrar quem que curte maratonar seriados, mas a dieta a conta-gotas não priva o espectador do prazer da expectativa — suprimido pelo regime fast-food da Netflix —, torna cada episódio um acontecimento e também prolonga a repercussão de uma obra, que se estende por um ou dois meses.
A Cidade É Nossa baseia-se em um livro de um jornalista do Baltimore Sun, Justin Fenton, We Own this City, que examina a corrosão sistêmica da polícia de Baltimore, cidade no Estado de Maryland que é, estatisticamente, uma das mais violentas no mundo. Em 2015, ano em que um jovem negro, Freddie Gray, morreu em circunstâncias suspeitas enquanto estava sob custódia policial, o município registrou 342 homicídios, o que representa uma taxa de 57 para cada 100 mil habitantes — no mesmo ano, o índice nos Estados Unidos foi de 4,8.
A minissérie em seis episódios — o último foi ao ar na segunda-feira (30) — é uma espécie de continuação não oficial de The Wire (2002-2008), ou A Escuta, recentemente eleita a melhor série do século 21 segundo 206 críticos, acadêmicos e profissionais de TV ouvidos pela BBC, e também disponível na HBO Max. As cinco temporadas abordam o narcotráfico e sua relação com instituições locais: a polícia, a Justiça, os políticos, a imprensa, as escolas e o sistema portuário. Os policiais tentam fazer alguma coisa contra o crime organizado, sabendo, desde o começo, que as chances estão entre mínimas e nenhuma. Entre os personagens marcantes, estão o detetive Jimmy McNulty (Dominic West), um investigador hábil mas dado a atos de insubordinação e cheio de problemas pessoais, e Omar Little (Michael Kenneth Williams), que é gay, não leva desaforo para casa e vive de roubar traficantes para vender os seus produtos.
Ex-repórter policial em Baltimore, David Simon criou A Escuta e assina A Cidade É Nossa na companhia do escritor George Pelecanos. A direção é de Reinaldo Marcus Green, que, antes do filme King Richard: Criando Campeãs (2021), realizou Monstros e Homens (2018), sobre as consequências do assassinato de um negro por policiais.
A narrativa alterna-se entre presente e passado, entre cenas nas ruas e depoimentos em salas fechadas. Tem vários núcleos de personagens, todos lidando com a corrupção e a truculência policiais — ora como protagonistas, ora como testemunhas, ora como investigadores. Jon Bernthal interpreta o sujo sargento Wayne Jenkins, figura central no força-tarefa do combate às armas. Wunmi Mosaku é Nicole Steele, uma advogada designada pela Justiça federal para apurar casos de desrespeito aos direitos civis. Egresso de A Escuta — era o gângster Marlo Stanfield —, Jamie Hector faz Sean Suiter, um detetive de Homicídios que acaba se envolvendo com Jenkins. Josh Charles encarna Daniel Hersl, sobre o qual pesam várias denúncias de maus-tratos. E Dagmara Dominczyk (de Succession) está no papel de Erika Jensen, uma agente do FBI que investiga as ações de Jenkins e companhia.
A Escada é uma minissérie de oito episódios — o penúltimo foi lançado nesta quinta-feira (2) — desenvolvida pelo nova-iorquino Antonio Campos, filho do jornalista brasileiro Lucas Mendes e diretor do filme O Diabo de Cada Dia (2020). Trata-se da versão ficcional de um rumoroso caso policial dos Estados Unidos. No dia 9 de dezembro de 2001, o escritor Michael Peterson (interpretado por Colin Firth) liga para a emergência. Sua esposa, Kathleen (papel de Toni Collette), está morrendo, deitada sobre uma poça de sangue aos pés da escada da mansão do casal na Carolina do Norte.
Foi um acidente, segundo o marido, que terá de contratar um advogado caríssimo, David Rudolf (Michael Stuhlbarg), já que os promotores Jim Hardin (Cullen Moss) e Freda Black (Parker Posey) estão dispostos a provar que foi um assassinato. A família se divide: os filhos de Michael acreditam (ou fingem para si mesmos que acreditam) na inocência do pai, a filha de Kathleen se junta às tias no lado da acusação.
A trama — cheia de vaivéns no tempo —, as chocantes revelações sobre o passado e a vida dupla de Peterson e as discussões sobre os bastidores de um julgamento nos EUA (em que, por exemplo, a tese de defesa é como um produto comercial, sujeito a modificações conforme o gosto do mercado) podem não ser novidades para quem já assistiu à série documental The Staircase (também conhecida no Brasil como Morte na Escadaria e disponível na Netflix), do diretor francês Jean-Xavier de Lestrade. Aliás, ele próprio é um personagem na adaptação comandada por Campos, em um núcleo dramático que inclui Juliette Binoche e que constitui o ponto menos interessante da minissérie. Mesmo assim, A Escada é uma das atrações mais fascinantes no momento, graças às atuações de Firth (plena de nuances), Collette, Stuhlbarg, Posey e Odessa Young, que se destaca interpretando Martha, uma das filhas de Michael.