Aos 55 anos, a premiada atriz gaúcha Ilana Kaplan criou uma personagem que caiu nas graças da internet em abril. Sua Keila Mellman alfineta aquelas cenas de ostentação vistas em perfis de celebridades ou anônimos em meio à pandemia de covid-19. “Tu quer postar? Posta. É de bom-tom? Não, não é de bom-tom”, adverte em um bordão que se alastrou pelas redes sociais.
Keila é uma decoradora de interiores que precisou se reinventar na pandemia. Ela passou a “decorar lives”. Além disso, passou a dar dicas de etiqueta virtual, sobre o que seria adequado ou não postar em meio à crise sanitária.
Em seu primeiro vídeo, que viralizou em abril na web, uma pessoa diz estar com oito amigos em um jatinho particular, rumo a Fernando de Noronha (PE), mas com todos “devidamente testados”. A dúvida: “Gostaria de saber se eu posso postar nós juntos, com uma champanhota, escrito eu mereço e tal”. Então, Keila arremata, com um tom um tanto afetado que lembra uma socialite:
— Tu quer postar? Posta. É de bom-tom? Não, não é de bom-tom! Tá na dúvida? Quanto custa o combo? Os amigos, o jatinho, o spa e a champanhota? Quanto dá isso em cesta básica?
Publicado originalmente em sua conta no Instagram no dia 30 de março, o vídeo acumula mais de 950 mil visualizações na plataforma. O registro viralizou primeiramente no Twitter, mas sem os créditos a atriz. Houve quem pensasse que a personagem era uma pessoa real.
— As pessoas entravam no meu perfil do Instagram e falavam: “Gente, é ela!”. “Estou chocada, é uma atriz, não é uma pessoa!”. O que me deixou muito feliz ao mesmo tempo (risos). As pessoas compraram a maluquice. Fiquei muito feliz — diverte-se Ilana.
A atriz gravou, até o momento, três vídeos de até dois minutos com a personagem, que são roteirizados por ela e sua irmã, Ana Kaplan — parceira na produção de esquetes. Originalmente, o nome da personagem era Sheila e foi criada em 2020 para uma live do Jam Café com baristas, artistas e profissionais ligados à gastronomia e ao café, em prol de dois projetos sociais.
Ilana resgatou a personagem neste ano, mas com o nome de Keila. “O numerologista mandou mudar o nome neste período de pandemia”, justifica na legenda do primeiro vídeo. Segundo a atriz, Keila é um mix de várias personalidades, mas com tinta mais carregada por conta do humor. Logo, ela alcançou um público que ainda não conhecia seu trabalho, apesar de seus 35 anos de carreira, especialmente no teatro.
— Estou achando muito divertido este momento. As redes sociais trazem um público infinitamente maior. Inclusive, gente que às vezes nem teve acesso ao teatro. É um meio bem diferente e interessante. Acho que esse é o grande barato da internet, é uma comunicação maior — avalia.
Um dos motivos para o sucesso de Keila, como a atriz aponta, pode ser a verbalização de algo que estava passando pela cabeça de muita gente, como aquele sentimento ao ver a ostentação nas redes sociais de influenciadores, ignorando protocolos sanitários e aglomerando, em meio a milhares de mortes diárias no país por conta da pandemia. Assim, a personagem costura essa indignação do público em sua comédia.
— É um período de muita crise na saúde e economia. Acho que a Keila acabou sendo uma catarse coletiva — diz Ilana. — Quando há excesso num país com muita desigualdade social, isso grita. Acho que é nesse lugar que as pessoas se colocaram e se identificaram.
No entanto, Ilana garante que sua função não é ficar apontando o dedo para os outros. Seu objetivo com a personagem é fazer uma comédia equilibrada com a crítica no texto.
— Sou contra a indústria do cancelamento. Acho que a Keila não foi feita para que as pessoas cancelem as outras. Ela foi criada para que a gente reflita. Para que todo mundo pense antes de postar. Principalmente num período como este que a gente está vivendo agora, em que as pessoas estão passando muita fome, em que existe muita desigualdade social. Então acho que é um toque para a gente pensar junto — explica.
Sucesso de público, Keila também conquistou a crítica. Uma análise publicada no site Observatório de Teatro, escrita por Bruno Cavalcanti, destaca que a atriz “marcou terreno importante no cenário online ao provar que, com um conteúdo bem pensado e desenvolvido, uma grande atriz também é capaz de dialogar com as redes de forma orgânica sem precisar de grandes artimanhas de marketing digital”.
Antes e depois da pandemia
Com mais de três décadas de trajetória, Ilana é um nome consagrado do teatro brasileiro e uma referência para a comédia nos palcos. Integrou a trupe de comédia Terça Insana nos anos 2000. Antes, ela foi estrela de dois clássicos do teatro gaúcho: Passagem para Java (coletânea de textos dela, de Miguel Magno e Ricardo Almeida, 1986) e Buffet Glória (1991), que foi escrita a partir de personagens criados por Ilana — nesta montagem, ela mostra sua versatilidade interpretando diferentes personalidades.
Ilana sempre teve a verve forte para o humor, desde a infância, o que ela especula que possa ser fruto de sua origem judaico-gaúcha. Além da comédia, transitou por diferentes papéis sendo dirigida por nomes como Paulo Autran, Jô Soares, Gerald Thomas, entre outros. Na TV, trabalhou no seriado A Vila (Multishow) e nas novelas I Love Paraisópolis (Globo) e Carrossel (SBT).
Antes da covid-19 se alastrar pelo mundo, Ilana estava em cartaz com a comédia Baixa Terapia, na qual contracena com Antonio Fagundes e outros quatro atores. Foi esse espetáculo que lhe rendeu o Prêmio Shell de São Paulo de melhor atriz em 2018.
Sobre a pandemia, Ilana afirma que está “super quarentenada”. Radicada em São Paulo, ela sai do confinamento somente para o essencial, como uma caminhada até o supermercado. Espera ser vacinada logo, assim como anseia para que isso aconteça com toda a população, para voltar logo aos palcos:
— Teatro é aglomeração e a gente não tem como voltar em cartaz se não tiver a maioria da população vacinada.
Por enquanto, ela seguirá brincando com a Keila, mas de maneira despretensiosa. Como uma forma de se ocupar com o humor.
— Não sei quantos vídeos vou fazer, mas enquanto achar divertido, seguirei produzindo. Não tenho nenhuma planilha, nada disso. Vou olhando as coisas, daí se acho que tenho o que falar, eu gravo. Não é um compromisso. É uma coisa que vou fazendo para divertir a mim e aos outros — arremata.