Para marcar a estreia, no dia 18 de fevereiro, de Mães Paralelas (ainda em cartaz nos cinemas de Porto Alegre) — que recebeu duas indicações ao Oscar: melhor atriz (Penélope Cruz) e música original (Alberto Iglesias) —, a Netflix adicionou a seu catálogo outros 11 filmes do diretor Pedro Almodóvar. Oito já estão disponíveis, e os outros três entram em exibição nesta quinta-feira (10) — confira abaixo a lista.
Aos 72 anos, Almodóvar é considerado o maior cineasta espanhol depois de Luis Buñuel (1900-1983). Seu currículo inclui o Oscar, o Globo de Ouro e o Bafta de filme internacional por Tudo sobre Minha Mãe (1999, em cartaz no Amazon Prime Video), pelo qual venceu a categoria de direção no Festival de Cannes e na Academia Britânica; o Oscar de roteiro original por Fale com Ela (2002), pelo qual também disputou a estatueta dourada de diretor e venceu o Globo de Ouro e o Bafta de filme internacional; e o troféu de roteiro em Cannes por Volver (2006), que valeu às atrizes Penélope Cruz, Carmen Maura, Lola Dueñas, Blanca Portillo, Yohana Cobo e Chus Lampreave um prêmio conjunto de atuação.
Embora Almodóvar tenha depurado seu estilo ao longo das cinco décadas de carreira, adotando uma sobriedade contrastante com a de seus primeiros títulos, seu cinema reúne uma série de marcas autorais. Como apontou meu colega Daniel Feix em 2011, no lançamento brasileiro de A Pele que Habito (infelizmente, fora do pacote da Netflix, mas disponível para aluguel ou compra na Apple TV), são característicos do diretor os amores improváveis, os personagens exóticos, a valorização da maternidade e do feminino, as tramas labirínticas (sobretudo quando houver visitas ao passado), a diversidade sexual, a variação entre o melodrama e o humor, a crítica à Igreja Católica, a estética de excessos (cores quentes, sobretudo o vermelho, visual exagerado, trilha a ressaltar as linhas dramáticas das histórias) e o fetiche cinematográfico: suas obras estão repletas de citações, incorporam cenas de outros filmes em meio à ação e ainda têm personagens que são atores ou cineastas.
Maus Hábitos (1983)
Assim escreveu o saudoso crítico Tuio Becker em ZH: "O espírito anárquico da chamada Movida Madrileña, que sacudiu a capital da Espanha na virada dos anos 1970 para a década de 1980, tem em Maus Hábitos um de seus momentos de glória". Yolanda (Cristina Sánchez Pascual) é uma cantora de boate que está metida em negócios ilícitos e precisa fugir depois que algo dá errado. Perseguida por criminosos, ela encontra abrigo em um convento. Uma trama semelhante foi estrelada por Whoopi Goldberg na célebre comédia Mudança de Hábito (1992) — Almodóvar recusou o convite para dirigir: "Eu não confiava no meu inglês. Ou então talvez seja por eu nunca acreditar quando me dizem que eu terei liberdade artística plena". No elenco, Carmen Maura, Marisa Paredes, Cecilia Roth, Julieta Serrano e Chus Lampreave, atrizes recorrentes na filmografia almodovariana. .
O que Eu Fiz para Merecer Isto? (1984)
Gloria (Carmen Maura) trabalha limpando a casa de outras pessoas para sustentar o marido grosseiro e infiel, o filho traficante, o filho adolescente e uma sogra folgada. Viciada em remédios, ela começa a perder o controle quando entra em abstinência.
A Lei do Desejo (1987)
O cineasta Pablo Quintero (Eusebio Poncela) é abandonado pelo amante, Juan (Miguel Molina), que decide ir viver para uma pequena aldeia costeira, mas os dois mantêm amizade. Com o sucesso de seu novo filme, Pablo se envolve com um fã, Antonio (Antonio Banderas), filho de um ministro, o que acaba colocando em risco a vida de sua irmã transexual, Tina (Carmen Maura).
Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988)
Ganhadora da Osella de Ouro de melhor roteiro no Festival de Veneza e indicada ao Oscar de filme internacional, esta comédia dramática projetou Almodóvar globalmente. Carmen Maura interpreta Pepa, uma dubladora de filmes que entra em crise depois de ser deixada pelo namorado. Em busca de algo para curar a fossa, ela se propõe a ajudar uma amiga que mantém uma relação com um terrorista. A situação se complica quando Pepa encontra a amante de seu ex-companheiro e, depois, passa a ser perseguida pela polícia. Com Antonio Banderas, Julieta Serrano, Rossy De Palma e Chus Lampreave.
De Salto Alto (1991)
Mescla de comédia, melodrama e crime. A cantora Becky (Marisa Paredes) abandonou a filha, Rebeca, por causa da carreira. Quinze anos depois, ela tenta se reconectar com a jovem (papel de Victoria Abril), mas descobre que ela está casada com seu antigo amante (Miguel Bosé). Disponível a partir de quinta-feira (10).
Kika (1993)
Uma esteticista (Verónica Forqué) se envolve com um fotógrafo voyeurista e o padrasto dele (Peter Coyote), que pode ser um assassino.
A Flor do Meu Segredo (1995)
Cansada de escrever livros inúteis e prestes a se separar do marido, uma romancista (Marisa Paredes) aceita trabalhar em um jornal sob pseudônimo. Disponível em 9 de fevereiro.Após anos de ausência, uma famosa cantora reencontra a filha, mas um assassinato pode colocar tudo a perder.
Carne Trêmula (1997)
É a versão livre de Almodóvar para um romance policial da inglesa Ruth Rendell. Ambientado em Madri, o filme acompanha o desastrado percurso do entregador de pizzas Victor (Liberto Rabal, anunciado à época como o novo Antonio Banderas). Aos 20 anos, o rapaz teve uma única experiência sexual, com a bela e viciada em heroína Elena (Francesca Neri). Na tentativa de repeti-la, ele atira acidentalmente no policial David (Javier Bardem), parceiro do veterano Sancho (José Sancho). É o começo de uma intensa ciranda amorosa. Disponível a partir de quinta-feira (10).
Fale com Ela (2002)
Mulheres em coma e homens solitários. Touradas em Madri e coreografias de Pina Bausch. Cinema mudo e personagens que contam filmes. Caetano Veloso e Elis Regina.
Almodóvar congrega isso tudo e um pouco mais em uma história que ele definiu como "um drama com algum sorriso e alguma gargalhada". Se o filme anterior, o oscarizado Tudo Sobre Minha Mãe, terminava com o fechamento de uma cortina, Fale com Ela começa com a abertura de uma cortina. Revela-se, então, um espetáculo da alemã Pina Bausch, Café Müller, metáfora para o que virá pela frente no próprio filme de Almodóvar. Na coreografia, duas mulheres de olhos fechados e braços estendidos se movimentam por um palco repleto de cadeiras e mesas situadas de forma desordenada. Um homem as vê e vai apartando os obstáculos para impedir que se machuquem.
As duas mulheres representam Alicia (Leonor Watling), jovem bailarina em coma após ser atropelada, e Lydia (Rosario Flores), toureira também inconsciente depois do ataque de um touro. O homem pode ser tanto o enfermeiro Benigno (Javier Cámara) quanto o jornalista argentino Marco (Darío Grandinetti) — que, por mero acaso e sem se conhecerem, estão sentados juntos na plateia de Café Müller.
Mais tarde, esses quatro personagens se cruzarão, na clínica onde Alicia e Lydia são internadas. Benigno cuida com devoção da bailarina, por quem nutria uma paixão platônica. Marco visita a toureira, com quem começara a namorar. Logo os dois homens desenvolvem uma intensa amizade.
Ganhador do Oscar de melhor roteiro original, Fale com Ela vai do passado ao destino de seus personagens, passando por momentos de sonho, como a participação especial de Caetano Veloso, que canta Cucurrucucú Paloma para um público que inclui as atrizes Marisa Paredes e Cecilia Roth. A outra voz brasileira, a de Elis Regina (interpretando Por Toda a Minha Vida, de Tom e Vinicius), aparece na belíssima cena em que Lydia decide tourear seis animais na mesma tarde — na esperança suicida de que o matador El Niño de Valencia, que a deixou, pelo menos se sinta culpado se ela se ferir. Almodóvar também é mágico quando Benigno vai assistir a Amante Minguante, película inventada pelo diretor espanhol, segundo ele mesmo, à maneira de F.W. Murnau, mestre do Expressionismo Alemão dos anos 1920. (Ao dar um papel para Geraldine Chaplin, filha de Charles Chaplin, Almodóvar rende outra homenagem ao cinema mudo.) Na volta, o enfermeiro conta à paciente em coma sobre o romance entre uma bela cientista (Paz Vega) e um homem que encolheu (Fele Martinez). Trata-se de uma elipse, com cerca de sete minutos, para o controverso episódio que acontece entre Benigno e Alicia.
Má Educação (2004)
Ao sair de uma sala de cinema que exibe um ciclo noir, um dos personagens centrais diz para o outro:
— É como se todos esses filmes falassem de nós.
A frase é chave para a casa de espelhos que Almodóvar montou. Má Educação se constitui de desdobramentos, duplicidades e deformações, fazendo do próprio cinema sua superfície.
A trama começa na Madri de 1980. Enrique (Fele Martínez) é um jovem diretor à procura de um roteiro. Ele recebe a visita de um rapaz que se apresenta como um amigo de colégio, Ignacio (Gael García Bernal). Hoje Ignacio é ator, e entrega a Enrique um script inspirado na infância de ambos, intitulado A Visita.
Com a leitura desse diretor, Almodóvar retoma a estrutura do filme dentro de um filme vista em Fale com Ela, mas agora mais complexa. Ignacio toma a forma do travesti Zahara (também vivido por Gael), que, ao reencontrar um outro Enrique, leva a ação para 1964, na cidadezinha onde os dois estudavam em colégio católico — e onde Ignácio, de voz angelical, ficava à mercê do padre Manolo.
À época, muitos anos antes de Dor e Glória (2019), Almodóvar disse que Má Educação era seu filme mais íntimo, mas não exatamente autobiográfico. Pode-se enxergar na história um reflexo multifacetado da carreira do cineasta e dos filmes que ele viu. Por exemplo: como em A Lei do Desejo, há um diretor que mistura perigosamente seus desejos ao trabalho e um travesti que faz um acerto de contas com um padre. O espelhamento se acentua na cena em que Ignacio e Enrique guris vão ao cinema e assistem a Sara Montiel (ícone gay) regressar a um convento após uma transformação.
Mas é sobretudo com o noir que Má Educação dialoga, como prenuncia a tensa música dos créditos iniciais. Enveredando novamente pelo gênero (como em Carne Trêmula), o diretor evoca clássicos (Pacto de Sangue, O Destino Bate a sua Porta). Mas, como esse é " um filme de Almodóvar" — bem avisado também na abertura — a femme fatale agora é um enfant terrible.
Volver (2006)
Revelada por Almodóvar em Tudo sobre Minha Mãe (1999), Penélope Cruz interpreta Raimunda, a personagem motor de uma trama essencialmente feminina, ambientada num povoado da região de La Mancha, terra de origem do diretor. É um lugar onde sopram ventos misteriosos, aos quais são atribuídos incêndios e casos de loucura. Foi um desses incêndios que matou Irene (Carmen Maura), mãe de Raimunda e Sole (Lola Dueñas). As irmãs vivem em Madri, Raimunda sustentando a filha adolescente (Yohana Cobo) e o marido desempregado, e Sole como cabeleireira. Já em tom cômico, furtivas aparições da defunta Irene, primeiro para Agustina (Blanca Portillo), amiga da família que permanece no povoado, e depois para Sole e Raimunda, desencadeiam um acerto de contas das mulheres com seus dramas passados e incertezas presentes.
Há uma aproximação entre Volver e O que Eu Fiz para Merecer Isto?: duas mulheres dão duro para sustentar a família, ambas com filhas adolescentes e maridos imprestáveis; um crime cometido na cozinha do apartamento e que fica impune; o convívio entre a Espanha moderna e a Espanha perdida no tempo; a televisão como agente manipulador de emoção; o flerte com o fantástico — a menina paranormal no primeiro, a mãe fantasma no segundo. E temos Carmen Maura, a protagonista de O que Eu Fiz para Merecer Isto?, agora no papel de mãe morta que ressurge para as filhas.
A separar os dois filmes está a maturidade humana e profissional do diretor. A ligação umbilical que o cineasta tinha com a mãe, atriz em quatro longas seus, e mantém com as duas irmãs — o irmão, Agustín, é o produtor de seus filmes — faz ele olhar para a família com maior reverência do que nos tempos da anarquia oitentista, quando sua obra brotava da contracultura de uma Espanha há pouco saída das sombras do franquismo. Em sua evolução como cineasta, Almodóvar exibe a habilidade de fazer parecer simples a ousada narrativa em diferentes registros — thriller policial, suspense fantástico, melodrama — sobre temas que lhe são caros, em especial a capacidade das mulheres de ajudarem umas às outras quando a barra pesa. As mulheres de Volver, defendidas pelo excepcional elenco premiado em Cannes, são lutadoras. Os beijos estalados e os "no, no, no" dos diálogos são detalhes que poderiam passar despercebidos, mas são exemplos da precisão com que Almodóvar, observador atento, captura as conversas triviais ouvidas na cozinha, na mesa do jantar, no salão de beleza, nas festas com as amigas. Disponível a partir de quinta-feira (10).
Mães Paralelas (2021)
O 22º longa-metragem de Almodóvar é seu filme mais político, apesar de a sinopse destacar os aspectos melodramáticos: duas mulheres, a fotógrafa Janis (Penélope Cruz, indicada ao Oscar de melhor atriz) e Ana (Milena Smit), dividem um quarto de hospital onde vão dar à luz. Ambas são solteiras e engravidaram por acidente. Janis, na casa dos 40 anos, não se arrepende e vibra com a oportunidade. Já Ana, adolescente, está assustada, arrependida e traumatizada. A mais velha tenta encorajá-la enquanto elas conversam pelos corredores da maternidade, criando um vínculo estreito. Em paralelo, a fotógrafa aguarda o trabalho de escavação de covas onde foram enterrados 10 homens executados pelas forças do ditador Franco no início da Guerra Civil Espanhola (clique aqui se quiser saber mais). Disponível a partir de 18 de fevereiro.