Depois de resgatar do limbo digital Dançando no Escuro (2000), o musical mais triste de todos os tempos, a plataforma de streaming MUBI traz de volta a cartaz mais dois filmes de Lars von Trier: Dogville (2003) e Manderlay (2005), que compõem a trilogia inacabada do diretor dinamarquês sobre o estilo de vida e as idiossincrasias da sociedade dos Estados Unidos. A conclusão do tríptico batizado de EUA: Terra de Oportunidades, Wasington (assim mesmo, sem o H), nunca saiu do papel.
Dogville é uma história dividida em um prólogo e nove partes, narrada pelo ator John Hurt em um tom misto de parábola bíblica e versão irônica da peça Nossa Cidade (1938), de Thornton Wilder. Aliás, o filme rodado em um enorme galpão na Suécia não tem cenários: os espaços são delineados com riscos de giz no chão, como marcas teatrais.
A trama se passa nos anos 1930, a época da Grande Depressão. Nicole Kidman interpreta Grace, mulher que, fugindo de gângsteres, pede abrigo em uma cidadezinha estadunidense, a fictícia Dogville do título. Encorajada por Tom (Paul Bettany), espécie de porta-voz da cidade, a moça fecha com a população um acordo informal: eles a ajudam a se esconder e ela, em troca, faz pequenos serviços para os moradores. A relação, porém, aos poucos se deteriora — a ponto de os pacatos habitantes deixarem aflorar toda a sua perversidade e transformarem Grace em escrava, inclusive sexual.
"Dogville é um filme absolutamente cruel", escreveu, à época da estreia nos cinemas, a psicanalista e escritora Diana Corso. "É cruel com as ilusões que vamos buscar no cinema, aniquilante com o desejo de ver alguma qualidade humana nas mentes simples. Ao longo de três horas, uma protagonista que evoca o trabalho de Cinderela, as intenções de Pollyanna, os revezes de David Copperfield e tantos outros emblemáticos altruístas sofredores, vive seu martírio sem nenhum dos paliativos que esses encontraram. Nada de bom se revela na alma humana ali, os pálidos momentos de harmonia ou esperança só servem para aumentar a altura do tombo. O diretor Lars von Trier rompe o pacto histórico do cinema com seu público de garantir alguma forma de catarse. (...) A bondade militante de Grace vai funcionando como revelador da perversão alheia. Por isso a cidade de Von Trier não tem paredes, apenas traços no chão definem o contorno das casas: para demonstrar que quando um ser humano não sabe qual o lugar do outro, ele o invadirá, colocando-o ao serviço das suas mais mesquinhas vontades".
Os bastidores de Dogville foram turbulentos, como de hábito nas produções de Von Trier. Marqueteiro, o cineasta sempre capitalizou a seu favor sua reputação de tirano: autorizou que o documentário Dogville Confessions (2003) mostrasse cenas gravadas no "confessionário" que montou no set do longa-metragem, espécie de cabine onde os atores podiam entrar e falar o que quisessem para uma câmera, durante as sete semanas de filmagem.
Nicole Kidman sofreu duplamente: como personagem e como atriz. Chorava constantemente durante o trabalho, queixando-se do tratamento ríspido. Sua paciência e sua sanidade foram tanto colocada à prova, que a ganhadora do Oscar por As Horas (2002) se recusou a retomar o papel de Grace na continuação de Dogville — traumatizada, também negou o convite para atuar em outro projeto do diretor, o díptico Ninfomaníaca (2013), alegando "incompatibilidade de agenda".
Sem Nicole Kidman, Von Trier escalou Bryce Dallas Howard para estrelar Manderlay, que lança mão dos mesmos recursos de linguagem. Agora, Grace depara com uma fazenda de algodão no Alabama onde os negros ainda trabalham como escravos, mesmo passados 70 anos da abolição. Revoltada com o sistema draconiano imposto na plantação pela velha senhora de Manderlay (Lauren Bacall), a garota pede ao pai, um chefão mafioso (Willem Dafoe, que acrescenta cinismo e humor ao personagem anteriormente interpretado por James Caan), para ficar no local, acompanhada de alguns capangas.
A intenção de Grace é libertar os cativos e instaurar um sistema cooperativo de trabalho. Mas "as concepções de liberdade e igualdade da branca liberal Grace não ecoam como ela imaginava nas mentalidades acostumadas à opressão de negros como o velho sábio Wilhelm (Danny Glover) e o jovem orgulhoso Timothy (Isaac de Bankolé)", escreveu o jornalista Roger Lerina na estreia do filme. "Manderlay é uma peça de denúncia que aponta o dedo para toda sorte de concepções raciais, inclusive as politicamente corretas."