Anote este nome: Beth de Araújo. A julgar pelo que mostrou em seu longa-metragem de estreia — Soft & Quiet (2022), sobre uma reunião de mulheres neonazistas —, o futuro é promissor para a diretora e roteirista nascida em San Francisco, nos Estados Unidos. Este é um dos filmes mais impactantes do 19º Fantaspoa, o Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre, que vai exibir o título na Cinemateca Capitólio no dia 20, quinta-feira, às 20h30min (em sessão comentada com a presença da realizadora), e no dia 22, sábado, às 13h.
Como o nome deixa intuir, a californiana tem raízes brasileiras — por parte do pai; a mãe é uma chinesa-estadunidense. Araújo é formada em Sociologia pela Universidade de Berkeley e, antes de Soft & Quiet, assinou quatro curtas — entre eles, Chevy Chase, drama sobre uma dependente de Oxycontin, e a comédia agridoce I Want to Marry a Creative Jewish Girl, entre 2014 e 2019 —, e dois episódios da série My Crazy Sex, em 2017.
Por Soft & Quiet, ela concorreu na categoria de diretores estreantes, a Bingham Ray, no Gotham Awards, troféu dedicado a produções de baixo orçamento (o teto é US$ 35 milhões) que abre a temporada de premiações nos EUA. O filme também recebeu muitas críticas positivas. Na revista Rolling Stone, por exemplo, foi listado como o sexto melhor terror de 2022 pelo crítico David Fear (aliás, sobrenome apropriado para a tarefa: em inglês, significa medo), que disse o seguinte: "O que é mais assustador do que Freddy Krueger, Jason Voorhes, Chucky e Michael Myers juntos? Que tal uma cabala de Karens neonazistas? (Karen é uma gíria pejorativa estadunidense para designar mulheres brancas autoritárias, agressivas — daquelas que gostam de se queixar com o gerente por tudo e qualquer coisas — e muitas vezes racistas e negacionistas.) Os últimos 30 minutos são tão tensos que é quase impossível assistir. Tome isso como um elogio e um alerta".
Fear também chamou atenção para um dos trunfos — e um dos truques — de Soft & Quiet: a narrativa em tempo real. Em entrevista ao site IndieWire, Beth de Araújo disse que a intenção foi fazer o filme "parecer tão intenso e sufocante quanto um crime de ódio real e verdadeiro". É como se tudo tivesse sido filmado em um único e longo plano-sequência, mas na verdade a diretora, sua equipe técnica e seu elenco trabalharam durante quatro dias, sempre começando às 18h34min, e há mínimos e quase imperceptíveis cortes.
Quando a história começa, conhecemos sua protagonista, a professora de educação infantil Emily (Stefanie Estes, vistas nos seriados do Amazon Prime Video Tales From the Loop e O Consultor). Ao perceber que uma mãe se atrasou, ela resolve fazer companhia a um menino. Fala de um livro para crianças que escreveu e mostra — só para os olhos dele, não para o espectador — a torta que está levando para um encontro com amigas.
A travessa com essa torta estará no centro da imagem enquanto a câmera acompanha o deslocamento de Emily até o chalé localizado em uma área verde que será palco da reunião e onde já estão Kim (Dana Millican), Marjorie (Eleanore Pienta), Alice (Rebekah Wiggins) e Jessica (Shannon Mahoney). No caminho, a professora conhecerá outra participante, Leslie (Olivia Luccardi), que traz nas costas da sua jaqueta jeans uma frase em alemão: Liebe zu hassen.
Se você sabe alemão, talvez se surpreenda menos quando, em meio a conversas amenas e risadas, Emily enfim desembalar a torta, revelando a existência de uma suástica em sua decoração.
Aquela é a primeira reunião das Daughters for Aryan Unity (Filhas pela Unidade Ariana). Leslie, como diz a estampa de sua jaqueta, ama odiar. Marjorie se queixa por ter sido preterida por uma imigrante colombiana em uma promoção no trabalho. Kim, que administra com o marido uma loja de bebidas, lamenta que "o país esteja sendo tomado debaixo do nariz" e tem sempre um termo pejorativo para colar em judeus, negros e asiáticos. A solitária Alice, mesmo ciente dos privilégios de ser branca, sente-se ainda mais "excluída" por causa de movimentos como o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam). Mãe de quatro filhos e à espera do quinto, Jessica conta que seu pai foi presidente interino da Ku Klux Klan e que ela atua bastante no Stormfront, site que propaga a supremacia branca, o nazismo, a negação do Holocausto, teorias conspiratórias antissemitas, islamofobia, antifeminismo, homofobia, transfobia... O pacote completo.
Para Emily, a população branca dos Estados Unidos vem sofrendo um processo de "lavagem cerebral" para que se sinta "vergonha da herança e culpa pela prosperidade". É ela quem explica o soft (suave) e quiet (silencioso) do título do filme:
— Nós temos que ser suaves por fora para que as ideias vigorosas sejam mais bem aceitas. Somos a melhor arma secreta com a qual ninguém toma cuidado porque nos movemos em silêncio.
É de se imaginar a história de terror contada no seu livro infantil e as aulas a serem dadas na escola do ódio que Emily pretende abrir. Soft & Quiet ilustra como, também debaixo do nosso nariz, na casa do vizinho ou na porta ao lado, ideais neonazistas germinam e se alastram, tendo entre os fertilizantes o ressentimento e a ignorância.
Soft & Quiet também mostra como a teoria vira prática, como uma "brincadeira" — a exemplo de quando às escondidas, com um sorriso meio constrangido, meio petulante, Emily ergue o braço para fazer a saudação a Adolf Hitler — pode descambar para algo muito sério. Basta uma fagulha para provocar um incêndio _ e aí a masculinidade tóxica surge como outro combustível: é por meio dela que Emily induz o marido a participar de uma ação que vai de mal a pior, tornando-se cada vez mais aflitiva e asfixiante, a ponto de só conseguirmos respirar no último instante do filme.