O título é quilométrico — Na Sala dos Espelhos: Autoimagem em Transe ou Beleza e Autenticidade como Mercadoria na Era dos Likes & Outras Encenações do Eu.
A narrativa vai do mito bíblico de Jacó às últimas sessões de foto de Marilyn Monroe, da obsessão da imperatriz Sissi, no século 19, pela magreza, à obsessão do mundo, no século 21, por Kylie Jenner.
E o texto está repleto de citações de filósofos, sociólogos, escritores e historiadores como os franceses René Girard e Simone Weil, o polonês Zygmunt Bauman, o alemão Hartmut Rosa, o sueco Martin Hägglund, as estadunidenses Stephanie Coontz e Susan Sontag, o sul-coreano Byung-Chul Han e a marroquina Eva Illouz, que discorrem sobre temas como a teoria do desejo mimético e a estética do liso, o casamento nos tempos dos caçadores-coletores e o estado permanente de insegurança da modernidade líquida.
Mas lê-se num fôlego só a terceira obra da quadrinista sueca Liv Strömquist publicada no Brasil (editora Quadrinhos na Cia., tradução de Kristin Lie Garrubo, 168 páginas, RS 79,90). Porque, a exemplo do que mostrou em A Origem do Mundo: Uma História Cultural da Vagina ou A Vulva vs. o Patriarcado (2018) e A Rosa Mais Vermelha Desabrocha: O Amor nos Tempos do Capitalismo Tardio ou Por que as Pessoas se Apaixonam tão Raramente Hoje em Dia (2021), a autora de 46 anos sabe dosar profundidade com leveza, seriedade com humor; sabe cotejar suas fontes teóricas com suas personagens, sejam elas da Bíblia ou celebridades, históricas ou fictícias; sabe encadear suas ideias com clareza e num ritmo harmônico; e sabe engajar o leitor, fazendo perguntas que nos convidam a refletir juntos, dando exemplos práticos de conceitos filosóficos e psicológicos, espelhando o passado com a contemporaneidade, o conto de fadas (é a madrasta da Branca de Neve que ilustra a capa da HQ) com a realidade não raro nua e muitas vezes crua.
Na Sala dos Espelhos começa justamente em tom de fábula, apresentando a mais nova das "cinco irmãs mais lindas do mundo", as Kardashian. O perfil de Kylie Jenner no Instagram origina a primeira das discussões propostas por Strömquist: "Por que as pessoas/garotas que olham uma foto da Kylie Jenner, com sua cinturinha de academia, suas maçãs do rosto esculpidas em marfim e sua bunda de perfeição celestial, não sentem apenas a alegria e a gratidão que sentem ao ver, digamos, um pôr do sol glorioso, uma praia paradisíaca ou uma ave magnífica — ou seja, um fascínio positivo diante da beleza da criação? Por que, paralelamente ao fascínio que sentem pelas fotos, também são tomadas por emoções negativas e difusas? Algo dói no peito. Mas o quê? Um sentimento de inferioridade, um sentimento de derrota? Um anseio inflamado que sabem ser irrealizável? Desejos vagos de se exercitar, fazer cirurgias plásticas, comprar cremes antirrugas ou botas de cano superalto — sentimentos indefinidos de frustração, quem sabe até raiva?".
Quem ajuda explicar é Girard, que propõe: uma vez satisfeitas as necessidades básicas, as pessoas sempre desejam o que os outros desejam. "Tomamos emprestado nosso desejo do outro, em um movimento tão fundamental, tão original", reproduz Strömquist, "que o confundimos com a vontade de sermos nós mesmos". A tempestade perfeita, que nos empurra para confiarmos ainda mais em modelos (sejam os famosos, sejam nossos amigos) e copiarmos ainda mais os desejos alheios, é que, ao nos livrarmos de tantas restrições e condutas impostas pela religião e pela tradição, ficou mais difícil saber o que de fato queremos. E no momento em que nosso desejo é despertado por outra pessoa, essa pessoa se torna um obstáculo, uma rival. Imitamos e competimos simultaneamente, "num misto de admiração submissa e rancor intenso".
No segundo capítulo, Liv Strömquist parte do relato bíblico sobre Jacó, Lia e Raquel para discorrer sobre "uma dolorosa realidade da condição humana: pessoas atraentes têm mais chance de serem amadas". O mergulho na história traz momentos brilhantes, como quando a quadrinista justifica por que cabelos longos, unhas compridas e sapatos de salto alto são considerados atributos de sedução em uma mulher.
Na sequência, ela recorre a Zygmunt Bauman para abordar a "vida de vigilância constante" dos casais contemporâneos: "Não há como saber de que lado do vínculo virá o golpe, quem será o primeiro a desferi-lo, tendo se cansado de compromissos entediantes e das promessas de uma lealdade difícil de cumprir ou tendo identificado em outro lugar ligações mais promissoras e menos incômodas". A única coisa a que podemos nos agarrar, nossa segurança contra a solidão, nossa proteção contra a morte metafórica de um abandono, passa a ser a beleza. E como vivemos na era da produção explosiva de imagens e do consumo maciço de fotos e vídeos, em redes sociais como Instagram e TikTok, a aparência se torna "infinitamente mais importante", como realça a terceira parte, Vestígios espectrais (termo cunhado por Susan Sontag).
A sociedade das selfies também é decorrente de um desejo de congelar o tempo. No penúltimo capítulo, A mãe da Branca de Neve, Strömquist ilustra os depoimentos de cinco mulheres que encaram ou já lidaram com o envelhecimento. Nina, 53 anos, sempre conseguiu qualquer cara que quisesse; agora, diz que ainda pode ser bonita, se estiver cercada de pessoas mais velhas ou num ambiente à meia-luz. Karin, 73, lembra que, quando tinha 52, o marido a trocou por uma mulher de 22. Lena, 53, assume: "Ser bonita é uma vantagem enorme. Usei e abusei do charme sempre que era útil para mim. A beleza pode ser uma arma de destruição em massa. Uma mulher bonita consegue convencer um homem de qualquer coisa". Ela vai além, enxergando "algo de democrático" na beleza: "Qualquer moça bonita — independentemente da classe social — pode subir na sociedade e ser recebida de portas abertas".
Daí que muita gente queira controlar a beleza e domar o tempo, o que é coerente em uma sociedade que, como diz o sociólogo Hartmut Rosa, deseja "colocar o mundo à nossa disposição": "Queremos planejar tudo, compreender tudo, conhecer tudo, conquistar tudo, controlar tudo". Mas a beleza não pode ser possuída ou poupada, ela é efêmera por natureza. Liv Strömquist filosofa: "Não é precisamente a efemeridade da beleza que a torna bela, assim como um arco-íris é belo porque desaparece, ou uma flor é bela porque murcha? Da mesma forma que a morte é uma condição para a vida, a efemeridade da beleza é uma condição para que ela seja percebida como tal".
Foi por não aceitar a transitoriedade de tudo que a imperatriz Isabel da Áustria (1837-1898), a Sissi, tornou-se, primeiro, uma figura que deslumbrava a todos, depois, uma mulher para quem a própria beleza virou um fardo. No capítulo final de Na Sala dos Espelhos, a autora rememora os esforços dessa personagem para esconder certas imperfeições, a ponto de, após completar 32 anos, se recusar a ser retratada ou fotografada novamente. Mas, em segredo, Sissi não parou de cultuar a si mesma, de lutar pela preservação de sua beleza. Sissi antecipou um dilema e um sofrimento muito atuais, o da divisão entre o eu privado e o eu público, estudado pelo sociólogo Chris Rojek, pesquisador do fenômeno das celebridades.
"No exato momento em que Franz Winterhalter finaliza o retrato perfeito de Sissi, aquele com as estrelas de diamante no cabelo, o quadro se torna rival de Sissi", escreve Liv Strömquist. "O quadro (o eu público) é celebrado, admirado, adorado. No entanto, existe uma pessoa real, que não é o quadro, que envelhece, tem dentes amarelados, pode ganhar peso. Uma pessoa que talvez ame a imagem, mas a imagem não a ama de volta. A imagem suga todo o amor e toda a aprovação que desejo. A imagem me ofusca. A imagem me humilha. A imagem ameaça me aniquilar. Os elogios ao quadro fazem o eu privado sentir: tudo em mim que não seja o quadro é uma merda e não deveria existir. A imagem se torna uma tirana".