*Por Ricardo Lísias
Escritor, autor de O Céu dos Suicidas (2012) e Uma Vista Particular (2016)
Li Zygmunt Bauman pela primeira vez quando eu ainda tinha esperança de encontrar uma explicação ampla o suficiente para abarcar o meu desgosto com o mundo contemporâneo. Acho que foi bem no final do século passado. Eu tinha acabado de me formar, estava de férias às vésperas de começar o mestrado na Unicamp e viajara pela primeira vez à Europa. Sozinho, jovem, com pouco dinheiro e tomando banho a cada três dias, fui parado e interrogado com certa violência verbal em Portugal, na Alemanha, na Eslováquia e depois saindo da Hungria, em direção à Holanda. Na pior abordagem, o oficial de alfândega afirmou que, sendo um brasileiro naquelas condições, eu realmente só poderia me tornar um imigrante ilegal.
Aliás, pensando agora para fazer este texto, percebo como essa mania de procurar análises que abarquem uma certa totalidade não me abandona: faz semanas que não paro de procurar um texto que me explique, com todas as nuanças possíveis, como Donald Trump conseguiu ser eleito...
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Com certeza, escolhi Bauman por causa do número de livros publicados. Entre os títulos em inglês e português, encontrei por volta de 10. Comecei por O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Gostei bastante. Em contraste com o clássico de Freud, O Mal-Estar na Civilização, aqui o filósofo polonês defende que a insegurança e o susto com as rápidas transformações da sociedade contemporânea marcam o desejo por liberdade que caracteriza o nosso tempo, e também a dificuldade que temos em encontrá-la.
Logo depois, li o que é para mim o seu melhor título: Ética Pós-Moderna. Nele, Bauman defende que, para renovarmos a forma como observamos nossa vida em comum, precisamos refazer o sentido de muitos conceitos. Um deles é o de "moral", sem dúvida cada vez mais desgastado. Concordo com isso: ou abandonamos o sentido que a sociedade deu a essa palavra, ou continuaremos assistindo a crimes de ódio.
Desde então, os livros de Bauman traduzidos no Brasil foram se multiplicando, lançados quase todos pela editora Jorge Zahar. Com certeza são mais de 40! Infelizmente, por conta da palavra "líquido", que se repete em muitos de seus títulos, seu pensamento acabou envolto em uma espécie de lugar-comum: o de que atualmente tudo é fluido e nos escorre pelas mãos. É uma simplificação que não alcança a complexidade de seu pensamento. De forma geral, para Bauman vivemos em um mundo em que a solidez está perdida, e nem sempre é muito fácil organizar a vida diante da areia movediça que tomou conta dos nossos dias.
Amor Líquido é o seu título mais lido, por motivos evidentes: as pessoas querem saber por que os afetos parecem hoje tão frágeis. Outros títulos, porém, me parecem bastante urgentes também. Segundo as notícias, boa parte dos leitores deste artigo tem alguma dívida. Vale a pena, assim, ler Capitalismo Parasitário, sobretudo o ótimo texto sobre cartões de crédito.
Recentemente, saiu no Brasil Estranhos à Nossa Porta, um texto ágil sobre a crise dos refugiados, certamente o problema humanitário mais grave do nosso tempo. Aqui, a questão do movimento é concreta: as pessoas estão precisando se mover para continuar vivas. De forma aguda, um conceito filosófico se torna, ao contrário do que costuma acontecer, em um dado de realidade. É provável que aqui esteja a amarga comprovação dos acertos do pensamento de Bauman. Até a imagem do líquido acabou duramente precisa: basta vermos que a maioria dos refugiados foge pelo mar, de onde muitos não escapam.
Enfim, não encontrei na ampla obra de Zygmunt Bauman todas as explicações que eu buscava para o mal-estar que não nos abandona. Não vou achar em lugar nenhum, embora vá teimar para sempre. Mas em seus livros estão muitas observações lúcidas, a coragem para tratar de temas bastante delicados, uma sociologia antenada com o nosso tempo e, mais ainda, algum conforto diante de um mundo cada vez mais cinzento. Cabe ainda um momento para observar a incrível coerência de seu pensamento: alguém que enxergou a fluidez contemporânea e a colocou como uma das bases de seu pensamento só poderia parar de escrever quando realmente a morte impedisse. É o que acaba de acontecer.
*Texto publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo, em 9/1/2017