É tradição na coluna: completados os primeiros cem dias de 2023, nesta segunda-feira (10), já dá para fazer a primeira lista dos melhores filmes do ano.
A regra é clara: só valem títulos que foram lançados a partir de 1º de janeiro, seja nos cinemas do RS, seja nas plataformas de streaming nacionais.
Na comparação com o ranking afetivo dos primeiros cem dias de 2022, que tinha o dobro de recomendações, percebi que ou estou vendo bem menos filmes nesta temporada, ou a safra não está tão robusta, ou estou apenas escolhendo mal (aliás, não assisti ainda ao francês A Garota Radiante, estreia da atriz Sandrine Kiberlain como diretora, em cartaz na Sala Paulo Amorim, e acabei de descobrir que preciso assistir à comédia romântica inglesa Rye Lane: Um Amor Inesperado, de Raine Allen Miller, presente em listas semelhantes da imprensa estrangeira e disponível no Star+).
Fato é que não me senti tentado a inflar a seleção — que deixou de fora alguns títulos festejados pela crítica, como o terror M3GAN, do neozelandês Gerard Johnstone (a meu ver, um cozido de vários ingredientes vistos anteriormente no seriado Black Mirror e na mais recente versão de Brinquedo Assassino), e Mato Seco em Chamas, do brasileiro Adirley Queirós e da portuguesa Joana Pimenta, sobre uma gangue feminina que distribui gasolina em uma enorme favela do Distrito Federal: a meu ver, a desconstrução das distopias à la Mad Max passou do ponto, e seus 153 minutos de duração se fazem sentir bastante, sobretudo porque prevalece a inação. Disse assim o crítico e montador Eduardo Escorel, na revista Piauí: "Nem mesmo o empenho sincero do elenco principal, formado por atrizes não profissionais (algumas delas ex-presidiárias), é capaz de tornar Mato Seco em Chamas menos entediante — sucedem-se closes das irmãs Léa e Chitara olhando para o horizonte e fumando, imersas em pensamentos aos quais o espectador não tem acesso".
Por outro lado, acho que algumas das obras abaixo — colocadas em ordem decrescente de preferência — estão entre as melhores dos últimos tempos. Clique nos links se quiser saber mais. E, por favor, comente: para você, quais são os destaques de 2023 até agora?
Menções honrosas
Para a atuação de Jonathan Majors como o antagonista de Creed III (que deve chegar ainda neste mês aao Amazon Prime Video), para o abraço d'O Urso do Pó Branco ao absurdo, ao ridículo e até ao bruto, e para a impressionante sequência de pancadaria e tiroteio em meio ao caótico trânsito ao redor do Arco do Triunfo, em Paris, em John Wick 4: Baba Yaga (ambos os filmes estão em cartaz nos cinemas).
11) Alcarràs (2022)
De Carla Simón. O drama espanhol que recebeu o Urso de Ouro no Festival de Berlim é inspirado na família da diretora, que cultiva pêssegos em Alcarràs, na Catalunha. O filme começa com três crianças, Iris (Ainet Jounou) e os gêmeos Pere e Pau (Joel e Isaac Rivera), brincando na carcaça de um carro, que fingem ser uma nave espacial. Parecem idílicas férias de verão, mas a vida dos pequenos e dos adultos (avós, pais, tios) está para sofrer um choque. Acontece que os Solés arrendam a terra há décadas, desde a guerra civil na Espanha. O patriarca, Rogelio (Josep Abad), não imaginava que o acordo de boca que tinha com os Pinyol pudesse acabar forçando o abandono do lugar ou a mudança de negócio: em vez de plantar frutas, teriam de instalar painéis de energia solar.
Vividos por um elenco local, sem experiência, os personagens reagem cada um a sua maneira. Um se enfurece, outro tenta fingir que nada está acontecendo, um terceiro tenta se unir aos algozes para garantir emprego... Ao não eleger um protagonista, Alcarràs a importância e o poder da comunidade em um filme sobre como a modernidade (ou a suposta modernidade) transforma radicalmente a vida no campo. E ao não estabelecer uma narrativa com um desenvolvimento dramático mais convencional, preferindo flagrar os Solés ora em cenas de crise, ora em cenas de alegria, Carla Simón espelha a alternância de momentos bons e ruins das vidas de todos nós. (MUBI)
10) Till: A Busca por Justiça (2022)
De Chinoye Chukwu. Lamentavelmente ignorado nas indicações ao Oscar, Till tem como trunfo uma das atuações mais marcantes da temporada: a de Danielle Deadwyler, premiada no Gotham e pela National Board of Review, indicada ao Critics' Choice e concorrentes no Bafta (da Academia Britânica) e no SAG Awards (do Sindicato dos Atores dos EUA). A atriz interpreta uma personagem histórica: Mamie Till-Mobley (1921-2003), que se tornou uma ativista dos direitos civis para os afro-americanos após a morte por linchamento de seu único filho, Emmett, 14 anos, em agosto de 1955, no Mississippi.
No racista Sul dos EUA, qualquer fagulha pode acender um incêndio. No caso de Emmett, foi um assobio. A partir daí, a revolta e a dor compartilham o espaço com a bela atuação de Deadwyler, que é sublinhada pela música composta pelo polonês Abel Korzeniowski, ora grave, ora emotiva. Na pele de Mamie, a atriz experiencia todos os estágios do luto de uma mãe que sabe o quanto seu filho sofreu (a cena no necrotério é fortíssima) — um luto que vai transformar em luta. Inicialmente, somente na esfera pessoal, rechaçando a tentativa de advogados e políticos de aproveitar a oportunidade para um pleito coletivo. Depois, ao deparar com "o ódio que corre como vírus no sangue dos brancos do Mississippi", com a hipocrisia e com a impunidade, mas também com a solidariedade e com o apoio da comunidade negra, a protagonista entende: a batalha de um é a batalha de todos. (Foi exibido nos cinemas e ainda não estreou no streaming)
9) Medusa (2021)
De Anita Rocha da Silveira. Premiado em festivais como o de San Sebastian e do Rio, é o filme de terror da bela, recatada e do lar. Como em Mate-me Por Favor (2015), a diretora carioca segue lidando com personagens femininas, com sexualidade, com a iminência da morte e com a crítica social. E volta a escalar a atriz Mari Oliveira, agora alçada à condição de protagonista.
Ela interpreta a enfermeira Mariana, participante de um grupo de música e dança (com figurinos e passos comportados, é claro) chamado de Preciosas do Altar. A líder é Michele (Lara Tremouroux), estrela nos cultos evangélicos do pastor Guilherme (Thiago Fragoso), que comanda uma milícia de extrema-direita e busca se eleger deputado. No palco, elas cantam versos sobre mulheres "devotas e submissas ao Senhor". Nas ruas, atacam mulheres consideradas promíscuas ou "bonitas demais". Quando uma das vítimas das blitze moralistas revida, machucando o rosto de Mariana, a protagonista se vê rejeitada e precisa lutar para se recolocar no ambiente social. Também passa a refletir sobre os ideais ultraconservadores, o radicalismo, a misoginia e a hipocrisia de seus pares, e a se interessar mais e mais pelo rumoroso caso de uma mulher desfigurada, Melissa (em participação especial de Bruna Linzmeyer). (Foi exibido nos cinemas e ainda não estreou no streaming)
8) Entre Mulheres (2022)
De Sarah Polley. Ganhador do Oscar de melhor roteiro adaptado, traz uma admirável seleção feminina, a começar por sua cineasta, que dirige as atrizes Frances McDormand, Jessie Buckley, Rooney Mara e Claire Foy. No início do filme, o espectador pode achar que a história se passa em uma época já bastante distante, por causa dos cenários, dos figurinos, da ausência de tecnologia e das restrições impostas às mulheres — por exemplo, elas não podem estudar e são todas analfabetas. Mas não: Entre Mulheres se passa em 2010, em uma comunidade religiosa isolada do resto do mundo, onde mulheres de todas as idades precisam conviver com as agressões físicas e o abuso sexual cometido por um bando de homens.
Quando elas descobrem que os estupros sofridos não eram obra do demônio, mas cometidos por homens que usavam tranquilizante empregado em vacas para dopar as mulheres e adolescentes e violentá-las enquanto dormiam, os agressores são presos e levados para uma cidade próxima. Só que logo vão voltar, afinal, a maioria dos homens compactua com a cultura do estupro. Aí, as personagens têm dois dias para se reunir em um celeiro e resolver como vão proceder: não fazem nada? Ficam e enfrentam os estupradores? Ou vão embora? É um debate tão doloroso quanto bonito, atravessado pelas questões de fé e religiosidade. (Foi exibido nos cinemas e ainda não estreou no streaming)
7) Os Fabelmans (2022)
De Steven Spielberg. É uma autobiografia disfarçada do cineasta três vezes ganhador do Oscar - como diretor e produtor de A Lista de Schindler (1993) e como realizador de O Resgate do Soldado Ryan (1999). A história começa na fila para uma sessão de O Maior Espetáculo da Terra (1952), de Cecil B. De Mille, e termina com uma visita do alter ego de Spielberg, o jovem Sammy Fabelman (interpretado por Gabriel LaBelle), à sala do mestre John Ford. Entre um fato e outro, Sammy precisa lidar com seus problemas familiares (a propósito, Paul Dano e Michelle Williams encantam nos papéis do pai e da mãe) e escolares ao mesmo tempo em que descobre não apenas técnicas de filmagem — vide os efeitos visuais em um bangue-bangue caseiro —, mas sobretudo os poderes do cinema. Se o desastre de trem no filme de De Mille provocou um trauma, por exemplo, a reprodução, com uma câmera super-8 e um trenzinho de brinquedo, traz a cura.
Indicado em sete categorias do Oscar (perdeu todas), Os Fabelmans nos convida a um passeio pelos temas, pela carreira e pela vida pessoal de Spielberg — por extensão, pela vivência de todos os cineastas e de todos os espectadores. Os filmes aparecem como válvulas de escape, como metáforas, como meio de dizer aquilo que não se consegue verbalizar, como meio de mostrar aquilo que não se consegue ou não se quer enxergar. (NOW e para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV e Google Play)
6) Decisão de Partir (2022)
De Park Chan-wook. O cineasta sul-coreano de Oldboy (2003) e A Criada (2016) venceu o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes por esta mistura de policial e romance. Tudo começa com o assassinato de um empresário rico, caso que será investigado pelo extremamente meticuloso detetive Jang Hae-Joon (Park Hae-il). A principal suspeita é a jovem esposa chinesa do falecido, Song Seo-rae (Tang Wei). é a principal suspeita. Aos poucos, o caráter obsessivo de Hae-joon mistura-se a uma paixão avassaladora pela viúva.
Ao retratar as contradições de seu protagonista, Chan-wook abre um pouco mão de sua violência característica em nome de uma sensualidade à beira do explosivo. Com um quê de Brian De Palma, trabalha no registro voyeurístico e na duplicidade de seus personagens — todos estamos sempre encenando, sempre há um fino véu encobrindo nossas reais intenções. (Disponível para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV e Google Play)
5) Tudo que Respira (2022)
De Shaunak Sen. Foi um dos cinco competidores no Oscar de melhor documentário. Registra a luta de dois irmãos — Saud e Nadeem — para, na companhia do amigo Salik, proteger e recuperar pássaros conhecidos como milhafres-pretos (black kite), afetados pela poluição que se abate sobre o céu e o ambiente de Nova Déli, na Índia. A cidade também sofre com uma escalada da violência de cunho religioso.
Sem lançar mão de narração ou de entrevistas propriamente ditas, Tudo que Respira (All That Breathes) estimula a reflexão sobre a relação do homem com a natureza — e com seus semelhantes — e consegue extrair imagens poéticas de ambientes degradados. (HBO Max)
4) Os Banshees de Inisherin (2022)
De Martin McDonagh. Foi o maior injustiçado do Oscar: recebeu nove indicações e não levou nenhuma estatueta dourada. Merecia pelo menos três: melhor ator, para Colin Farrell, que faz um trabalho mais nuançado, ator coadjuvante, para Barry Keoghan, que evita a caricatura ao interpretar o bobo do vilarejo (também é um sujeito sensível e sofrido), e roteiro original, do próprio McDonagh — a despeito da da criatividade e do desprendimento dos Daniels ao liquidificarem referências cinematográficas em Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, a história de Os Banshees de Inisherin é realmente a mais surpreendente.
E também é o que mais faz o espectador se colocar no lugar dos personagens. Naquela ilha da Irlanda dos anos 1920, a batalha pessoal entre dois ex-melhores amigos, Pádraic (papel de Farrell) e Colm (Brendan Gleeson), não serve de metáfora apenas da guerra civil que marcou o país; o microcosmo representa qualquer cenário onde alguma diferença — política, religiosa, sexual, esportiva etc. — se impõe e anula as muitas semelhanças. Onde as pessoas dão um dedo para não dar o braço a torcer. Onde o ressentimento queima e se alastra. (Star+)
3) Babilônia (2022)
De Damien Chazelle. É um filme sobre excessos e um filme excessivo, inclusive na duração, que ultrapassa as três horas (spoiler: elas passam voando, pelo menos no cinema).
O espectador de Babilônia pode reconhecer características dos títulos anteriores do diretor — Whiplash (2014), La La Land (2016) e O Primeiro Homem (2018). Novamente, Chazelle conta uma história sobre dois jovens que perseguem o sucesso em Los Angeles — outra vez, temos uma aspirante a atriz, Nellie LaRoy (Margot Robbie, excelente), e, se não um pianista, temos um cara que carrega o piano, o faz-tudo Manny (Diego Calva). Novamente, sonhos podem se tornar perigosas obsessões. Novamente, o cineasta busca sincronizar som e imagem, em uma simbiose alucinante orquestrada em parceria com seus colaboradores habituais: o editor Tom Cross e o compositor Justin Hurwitz — autor de um tema absolutamente empolgante e totalmente contagiante, que parte da instrumentação de uma banda de jazz dos anos 1920 mas acrescenta toques de rock e eletrônica. Montagem e música são fundamentais para traduzir a efervescência e a loucura da Hollywood daqueles tempos, às voltas com a complicada transição do cinema mudo para os filmes falados e povoada por tipos como o astro Jack Conrad (Brad Pitt), a cantora andrógina Lady Fay Zhu (Li Jun Li), o trompetista negro Sidney Palmer (Jovan Adepo), a jornalista de fofocas Elinor St. John (Jean Smart) e o gângster vivido de forma simultaneamente patética e assombrosa por Tobey Maguire. (NOW e para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV e Google Play)
2) Close (2022)
De Lukas Dhont. Ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes e foi o concorrente da Bélgica no Oscar de melhor filme internacional. É um belo e triste drama sobre amizade, masculinidade tóxica e homofobia na adolescência.
Com um estilo de filmagem muito naturalista, que remete ao dos irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, Close tem como personagem principal Léo (em ótima atuação do estreante Eden Dambrino), 13 anos, filho caçula de agricultores que cultivam flores e melhor amigo de Rémi (Gustav De Waele), que tem a mesma idade e estuda oboé para um dia, quem sabe, tornar-se músico. Os dois garotos não se desgrudam, passam o dia inteiro brincando, e de noite chegam a dormir abraçados. Mas não são namorados. Ou não importa se são ou não são, como disse o diretor em uma entrevista. Este é um filme sobre como matamos a amizade entre meninos desde que eles são jovens. À medida que envelhecem e passam a lidar mais com as expectativas de masculinidade, os garotos se veem forçados a deixar de lado a ternura e a fragilidade e a abraçar a agressividade e a violência. (Está em cartaz na Sala Paulo Amorim, às 19h, e tem previsão de estreia no MUBI em 21/4)
1) TÁR (2022)
De Todd Field. Aos 59 anos, o cineasta californiano disse que este foi, provavelmente, seu último filme. Se foi mesmo, sua carreira é a das mais singulares do cinema. Em um intervalo de duas décadas, Field dirigiu apenas três longas-metragens e concorreu ao Oscar pelos três: como produtor e coautor do roteiro adaptado de Entre Quatro Paredes (2001), como um dos responsáveis pelo script de Pecados Íntimos (2006) e como produtor, diretor e roteirista de TÁR.
Na trama, ele evita os típicos caminhos hollywoodianos ao acompanhar a jornada autodestrutiva de uma celebridade da música clássica, a regente Lydia Tár, encarnada pela maravilhosa Cate Blanchett (foi um pecado não ter levado o Oscar; aliás, foi um pecado TÁR sair de mãos abanando). Field pega desvios e, em vez de oferecer cenas à la cartão postal, em que tudo está dado, nos convida a explorar detalhes e a flagrarmos sua protagonista em momentos de intimidade, de vulnerabilidade, de crueldade.
Charlotte Higgins, redatora-chefe de Cultura do jornal britânico The Guardian, resumiu várias interpretações conflitantes de TÁR: "Que é uma deturpação vergonhosa do campo da música clássica; que tudo é muito real; que tudo é muito surreal; que carrega um peso intelectual que é raro no cinema; que não é tão esperto quanto pensa; que não se trata de regência, mas sim de poder; que não se trata de poder, mas sim de narcisismo; que se trata de um choque de ética entre as gerações; que é sobre o feminismo da terceira onda; que sua protagonista, em toda a sua antipatia, é arrebatadoramente complexa; que sua protagonista é irremediavelmente odiosa; que é uma anatomização fascinante da cultura do cancelamento; que na verdade é um filme retrógrado que tem um objetivo amargo na política identitária". Pode-se acrescentar outros temas e outras queixas levantados, como a possibilidade ou não de se separar o artista da obra, sobretudo à luz dos debates sobre diversidade de gênero e representatividade étnica; as semelhanças marcantes, nos dados biográficos, e diferenças gritantes, na conduta pessoal, entre a personagem central e a maestra Marin Alsop; e o fato de que essa protagonista é uma predadora sexual, que usa a sua posição hierárquica e seu status artístico para levar para a cama, enquanto aqui, na vida real, a grande maioria dos que se valem disso para cometer abuso são homens. "Depois", prosseguiu Higgins, "há um extenso debate online dedicado a decodificar seu misterioso ato final. Há algo empolgante em um filme que é tão aberto, que demanda tanta discussão". Assino embaixo. (Está em cartaz no GNC Moinhos, na sessão das 21h, e deve chegar em breve às plataformas digitais; mas dê preferência à experiência imersiva da sala de cinema)