Domingo, 10 de abril, será o 100º dia de 2022. Hora de fechar a primeira parcial dos melhores filmes do ano.
A regra é clara: só valem títulos que estrearam no Brasil — seja no cinema ou diretamente no streaming — a partir de 1º de janeiro (mas há duas exceções, explicadas na lista abaixo).
O ranking tem obras produzidas ou ambientadas em 12 países (Brasil, China, Dinamarca, Estados Unidos, França, Índia, Inglaterra, Islândia, Japão, Líbano, México e Noruega) está em ordem puramente alfabética — clique nos links se quiser saber mais. As menções honrosas vão para Fantasmas do Passado, A Felicidade das Pequenas Coisas, Eduardo e Mônica, Kimi: Alguém Está Escutando e Spencer.
Ascensão (2021)
Foi um dos cinco indicados ao Oscar de melhor documentário. Estadunidense de mãe chinesa, a produtora e diretora Jessica Kingdon estreia no comando de um longa-metragem com este filme observacional e impressionista — não há entrevistas nem narrações. Ela viajou por 51 locações na China para filmar cenas cotidianas, estruturadas em três temas: trabalho, consumismo e lazer. Em uma jornada visual fascinante, Ascensão demonstra o progresso econômico e a divisão de classes cada vez maior. Começa com as hordas de trabalhadores buscando empregos de baixa remuneração. Depois veremos, entre outros cenários, a linha de montagem de bonecas sexuais de última geração, um curso de boas maneiras nos negócios, escolas de guarda-costas e de mordomos e um imenso e lotadíssimo parque aquático. (Paramount+)
Batman (2022)
Com um trabalho fascinante de fotografia, design de produção e edição, o diretor Matt Reeves mistura terror, o cinema noir dos anos 1940, o filme de serial killer (como Seven e Zodíaco), o thriller político e até a dinâmica das duplas policiais. Na trama de quase três horas, Batman (Robert Pattinson) e o tenente Gordon (Jeffrey Wright) precisam caçar uma versão nada cômica do Charada (Paul Dano), que começou pelo prefeito uma matança em Gotham City. Zoë Kravitz encarna Selina Kyle, a Mulher-Gato, John Turturro é o mafioso Carmine Falcone, e Colin Farrell está irreconhecível como o Pinguim. Pattinson é um dos grandes destaques de Batman: pálido e com um tom deprê, o ator foi uma escolha perfeita para a abordagem proposta por Reeves. Nela, o trauma de infância e a sede de vingança que deram origem ao Batman são sombras tão pesadas que anulam a existência de Bruce Wayne. (Em cartaz nos cinemas. Estreia em 19/4 na HBO Max)
Drive my Car (2021)
O Oscar de melhor filme internacional coroou uma trajetória que inclui o prêmio de roteiro no Festival de Cannes, o Globo de Ouro, o Bafta e o Critics' Choice. Seu diretor, Ryûsuke Hamaguchi, não tem pressa para contar suas histórias. Já fez um filme de quatro horas e 15 minutos e outro de cinco horas e 17 minutos. Drive my Car tem três horas de duração, mas é tão imersivo que poderíamos passar mais tempo junto aos personagens, ouvindo seus longos diálogos sobre paixões, segredos e arrependimentos. Aliás, é tão intimista que realmente nos sentimos muito próximos dos personagens. O protagonista é Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), um ator e diretor de teatro que tem sua vida abalada por perdas e traumas. Não por acaso, um dos cenários principais do filme é Hiroshima, cidade arrasada pela bomba atômica em 1945. Yûsuke viaja a Hiroshima para montar a peça Tio Vânia, de Tchékhov. Por causa das regras do festival de teatro, lá não poderá dirigir seu amado e bem cuidado carro, um Saab vermelho com 15 anos de uso e no qual escuta fitas cassete com falas dos espetáculos. Aí, ele passa a interagir com Misaki (Tôko Miura), a motorista contratada pelo festival. Ela também é atormentada pela dor e pela culpa. Nas ruas e nas estradas de Hiroshima, um lugar marcado pela morte e pela destruição, mas também pela resiliência e pela reconstrução, Yûsuke e Misaki vão, pouco a pouco, revelando os buracos de suas almas e encurtando a distância. No caminho, surgem curvas dramáticas, sinuosas, mas nunca bruscas, e sempre em direção a algum tipo de cura. (MUBI)
Escrevendo com Fogo (2021)
Concorrente ao Oscar de documentário e dirigido por Rintu Thomas e Sushmit Ghosh, começa explicando, em um letreiro, o sistema de castas da Índia. À margem da hierarquia, estão os dalits: os párias, os impuros, os intocáveis. São dalits as editoras e repórteres do Khabar Lahariya, único veículo de comunicação indiano com comando feminino e foco do filme. Foi fundado em maio de 2002, com sede no Estado mais populoso do país, Uttar Pradesh, situado ao norte e notório pelos crimes contra as mulheres. No início de Escrevendo com Fogo, Meera Devi, repórter-chefe do Khabar Lahariya, está em trabalho de apuração. Na companhia do marido, uma mulher enumera os dias do mês de janeiro nos quais foi estuprada por homens que invadiram sua casa quando ela estava sozinha: 10, 16, 18, 19... A polícia não quis abrir inquérito, diz o casal. Na delegacia, um oficial afirma a Meera que desconhece o caso. (Consta que apenas uma a cada quatro denúncias termina em condenação na Índia, país que costuma chocar o mundo com episódios de estupro coletivo, conforme visto no filme de ficção Mom e na série policial Crimes em Déli.) (Disponível para compra ou aluguel em Apple TV, Claro Now, Google Play, Vivo Play e YouTube)
A Filha Perdida (2021)
Apesar de ter estreado em 31 de dezembro de 2021, entra na lista porque, na prática, só aconteceu em 2022. Em seu primeiro longa-metragem como diretora, a atriz estadunidense Maggie Gyllenhaal disputou o Oscar de roteiro adaptado — A Filha Perdida é baseado no romance homônimo publicado pela escritora italiana Elena Ferrante em 2006. Oscarizada por A Favorita (2018), a inglesa Olivia Colman concorreu de novo ao prêmio de melhor atriz no papel de Leda Caruso, uma professora universitária que, durante suas férias em uma praia da Grécia, fica obcecada por uma jovem mãe (Dakota Johnson) e sua filha. A partir de então, Leda se vê confrontada por memórias dos tempos em que ela própria (encarnada por Jessie Buckley, indicada ao Oscar de atriz coadjuvante) tinha de lidar com suas duas crianças. A trama de mistério e perigo é entrelaçada à abordagem, com despudor, de temas como maternidade, sexualidade, papéis sociais e ambição profissional. (Netflix)
Flee: Nenhum Lugar para Chamar de Lar (2021)
Depois de fazer história no Oscar com uma inédita tripla indicação — melhor filme internacional, melhor documentário e melhor animação —, este entra na lista porque já está para estrear (veja no fim do texto). Dirigido por Jonas Poher Rasmussen, Flee conta a história de Amin Nawabi (coautor do roteiro), um refugiado afegão que, prestes a se casar com seu companheiro, compartilha pela primeira vez os dramas de seu passado. Hoje um acadêmico de 30 e poucos anos, Amin relembra sua infância no Afeganistão ("Onde sequer há uma palavra para homossexual") e como o crescimento dos Mujahidin (grupos guerrilheiros precursores do Talibã) impôs um exílio e uma diáspora à sua família. O impacto é acentuado pelo uso pontual de imagens de arquivo colhidas em Cabul, em Moscou e no Mar Báltico, por exemplo. (Estreia nos cinemas em 21/4)
Fresh (2022)
Caberia bem em um Fantaspoa, cuja 18ª edição será realizada de 14 de abril a 1º de maio. Tem um orçamento pequeno, pelo menos para os padrões dos EUA; traz a assinatura de uma diretora estreante (Mimi Cave), duas condições que, combinadas ou separadamente, são comuns no Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre; seus dois atores principais, Daisy Edgar-Jones (da série Normal People) e Sebastian Stan (o Soldado Invernal da Marvel), não têm pudores para abraçar o bizarro; e o filme arrisca-se à mescla de gêneros — no caso, o suspense policial, o terror e a comédia. Mais não dá para dizer, porque Fresh é um prato que, quanto menos soubermos de seus ingredientes, mais poderemos degustá-lo. Mas também pode ser que nos repugne, por causa do tema abordado: a violência contra as mulheres (Star+)
O Golpista do Tinder (2022)
É a mais recente sensação entre os documentários que reconstituem crimes reais. Dirigido pela inglesa Felicity Morris, começa contando a história da norueguesa Cecilie Fjellhoy, uma loira sorridente com experiência no aplicativo de paquera: no seu celular, ela mostra que, em sete anos de uso, houve 1.024 matches. Um deles foi com Simon Leviev, que, aos 20 e tantos anos, parecia ser o príncipe encantado dos contos de fadas. Ledo engano. Em ritmo de suspense irresistível, O Golpista do Tinder fala sobre as ilusões amorosas e evidencia como estamos sujeitos aos riscos do culto à imagem e da sedução da ostentação. O dinheiro compra nossa confiança: se alguém parece pobre, suspeitamos; se alguém parece rico, pode acabar nos deixando pobres. (Netflix)
Lamb (2021)
Representando a Islândia, o primeiro longa-metragem dirigido por Valdimar Jóhannsson ficou entre os 15 semifinalistas do Oscar de melhor filme internacional. Também recebeu um prêmio pela originalidade na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes e conquistou três troféus em Sitges, prestigiada competição espanhola de terror e fantasia: melhor filme, diretor estreante e atriz (a sueca Noomi Rapace). Com toques de terror folclórico e drama existencialista, a história se passa em uma fazenda de ovelhas, onde um casal sem filhos — Ingvar (Hilmir Snær Guðnason) e Maria (Noomi Rapace) — se vê às voltas com um misterioso bebê. Sim, é um filhote de ovelha, como o cartaz entrega. Mas convém não revelar mais da sinopse. O que dá para dizer é que Lamb trata de como lidamos com o luto e das consequências que podemos sofrer quando desafiamos a vontade da natureza. E vale avisar que os 105 minutos de duração transcorrem vagarosamente, criando uma atmosfera asfixiante que combina com a gélida paisagem, até chegar a um clímax poderoso. (MUBI)
Licorice Pizza (2021)
O cineasta Paul Thomas Anderson é um habituê do Oscar, mas nunca saiu da festa com um prêmio nas mãos. Antes de Licorice Pizza, pelo qual recebeu três indicações — melhor filme (como um dos produtores), direção e roteiro original —, já havia concorrido por Boogie Nights (1997, roteiro original), Magnólia (1999, roteiro original), Sangue Negro (2007, filme, direção e roteiro adaptado), Vício Inerente (2014, roteiro adaptado) e Trama Fantasma (2017, filme e direção). Nesta comédia romântica de caráter episódico, ele imprime um olhar nostálgico para a Califórnia de 1973, retratando o romance platônico entre um ator de 15 anos e uma mulher de 25 — personagens interpretados de forma absolutamente encantadora pelos estreantes Cooper Hoffman e Alana Haim. Bradley Cooper e Sean Penn fazem participações especiais. (Foi exibido nos cinemas e ainda não tem previsão de estreia no streaming)
Mães Paralelas (2021)
Mães Paralelas é o filme mais político de Pedro Almodóvar, embora a sinopse destaque os aspectos melodramáticos: duas mulheres, a fotógrafa Janis (Penélope Cruz, indicada ao Oscar de melhor atriz), na casa dos 40 anos, e a adolescente Ana (Milena Smit), dividem um quarto de hospital onde vão dar à luz. Ambas são solteiras e engravidaram por acidente. Nos corredores da maternidade, elas criam um vínculo estreito que pode ser posto à prova mais adiante. Em paralelo, a fotógrafa aguarda o trabalho de escavação de covas onde foram enterrados 10 homens executados pelas forças do ditador Franco no início da Guerra Civil Espanhola. (Netflix)
A Noite do Fogo (2021)
Ganhou menção honrosa na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes, foi um dos 15 semifinalistas do Oscar de melhor filme internacional, representando o México, e valeu a Tatiana Huezo uma indicação ao troféu do Sindicato dos Diretores dos EUA na categoria de estreante - embora ela não seja: assinou os documentários El Lugar más Pequeño (2011) e Tempestade (2016). Há semelhanças temáticas e estilísticas entre as três obras. Em A Noite do Fogo, Huezo observa o cotidiano de um povoado violentado pelo narcotráfico pelos olhos de três meninas: Ana (vivida por Ana Cristina Ordóñez González na infância e por Marya Membreño na adolescência), Maria (Blanca Itzel Pérez/Giselle Barrera Sánchez) e Paula (Camila Gaal/Alejandra Camacho). O perigo e a morte estão sempre nas redondezas, o silêncio e a fuga são aliados vitais, o medo dita os passos — sobretudo os das mães e os das filhas, como enfatiza o título brasileiro do romance em que a ficção se baseia: Reze pelas Mulheres Roubadas. (Netflix)
Pequena Mamãe (2021)
Diretora de um dos mais lindos e arrebatadores títulos do século 21 (Retrato de uma Jovem em Chamas), a francesa Céline Sciamma apresenta aqui um pequeno grande filme. Pequeno porque dura apenas 70 minutos (transcorridos sem pressa nenhuma, como é característico da cineasta: sua câmera deixa que as coisas aconteçam, que os personagens sintam) e traz como protagonista uma menina de oito anos, que circula por poucos cenários. Grande porque, com uma mescla de economia narrativa e simbolismo sofisticado, Pequena Mamãe trata de temas complexos e perenes: o luto, a infância, a memória. (Foi exibido nos cinemas e ainda não tem previsão de estreia no streaming)
Perfeitos Desconhecidos (2022)
Trata-se de uma das muitas versões internacionais da homônima comédia dramática italiana lançada em 2016 pelo cineasta Paolo Genovese. Já houve adaptações na Alemanha, na China, na Espanha, na Grécia, na República Tcheca... Esta aqui merece destaque porque é a primeira produção árabe da Netflix — e porque causou polêmica no Oriente Médio desde seu lançamento, no final de janeiro. Os motivos, cabe ao espectador descobrir: revelá-los seria dar spoiler a quem ainda não conhece a história. Com direção do libanês Wissam Smayra, o filme acompanha um grupo de sete amigos (incluindo três casais) que, durante um jantar, concorda em participar de um jogo perigoso: eles deixam os celulares desbloqueados na mesa, expondo-se ao risco de ligações e mensagens revelarem segredos, traições e quetais. Perfeitos Desconhecidos consegue equilibrar bem as doses de humor e de drama, fazendo um retrato do carinho e da hipocrisia que podem coexistir em um relacionamento. O elenco conta com Nadine Labaki, diretora de Cafarnaum (2018), que ganhou prêmios no Festival de Cannes e concorreu ao Oscar, ao Globo de Ouro e ao Bafta de melhor filme internacional, e a estrela egípcia Mona Zaki. (Netflix)
A Pior Pessoa do Mundo (2021)
O título dirigido por Joachim Trier (de Oslo, 31 de Agosto) rendeu à protagonista, Renate Reinsve, o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes e foi indicado aos Oscar de filme internacional e roteiro original. Trata-se de uma encantadora subversão das comédias românticas e um provocador retrato dos millenials. Narrado em um prólogo, 12 capítulos e um epílogo com durações e humores variados, expõe as angústias, as buscas e a inconstância dessa geração, que é encarnada pela personagem de Reinsve, Julie. Beirando os 30 anos, ela sai da faculdade de medicina para a psicologia, depois se descobre fotógrafa, mas acaba como vendedora em uma livraria. Suas desventuras incluem o romance com um quadrinista quarentão, Aksel (Anders Danielsen Lie) — responsável por reflexões argutas sobre arte e finitude - e o flerte com o jovem Eivind (Herbert Nordrum), que rende uma das sequências mais inebriantes da temporada. Ah, e A Pior Pessoa do Mundo termina com uma versão em inglês de Águas de Março (Tom Jobim) na voz de Art Garfunkel. (Em cartaz nos cinemas)
Pig: A Vingança (2021)
O subtítulo acrescentado no Brasil dá a ideia de que o filme dirigido pelo estadunidense Michael Sarnoski será uma mistura de excentricidade e violência. Ainda mais que o personagem principal é vivido por Nicolas Cage, que já há um bom tempo vem encarnando tipos bizarros ou brutos. A sinopse, é verdade, também sugere um caminho trilhado outras tantas vezes pelo ator: a jornada de autodestruição, o sacrifício e a explosão de violência em busca de algum tipo de redenção. Cage interpreta o ermitão Rob, que mora em uma floresta do Oregon na companhia de uma porca. Farejadora, ela é sua companheira na procura por trufas negras, um dos fungos comestíveis mais caros do mundo. O único contato de Rob com a sociedade se dá nas quintas-feiras, quando recebe a visita de seu jovem comprador (Alex Wolff). É uma espécie de paraíso, até que acontece uma coisa que, parece, vai fazer Pig descambar para um filme do tipo John Wick. Mas não é por aí. A história traz uma surpresa atrás da outra, a cada camada mostrando mais beleza e se tornando, claro, mais profunda. (Telecine)
Red: Crescer É uma Fera (2022)
É significativo que a Pixar tenha escolhido Red: Crescer É uma Fera para ser seu 25º longa-metragem de animação. Trata-se de um marco na história do estúdio: é o primeiro dirigido exclusivamente por uma mulher, Domee Shi; é o primeiro com elenco predominantemente asiático; e é o primeiro a tratar de puberdade e menstruação — daí o "ficando vermelho" do título original (Turning Red). (Disney+)
Sempre em Frente (2021)
Dirigido por Mike Mills, Sempre em Frente é o filme que o ator Joaquin Phoenix fez para exorcizar Coringa (2019). Após sofrer física e psicologicamente para encarnar o atormentado Arthur Fleck, em Sempre em Frente ele vive uma história sobre empatia e esperança e até se permite ter uma pança. Seu personagem, Johnny, é um jornalista de rádio que está dando início a um novo projeto: entrevistar crianças e adolescentes de várias partes dos Estados Unidos para saber o que elas esperam do futuro (e também como se sentem no presente). A certa altura, Johnny terá de cuidar do sobrinho de nove anos, Jesse (Woody Norman), para que a mãe dele (Gaby Hoffman) possa resolver questões ligadas ao ex-marido e pai do garoto. (Foi exibido nos cinemas e ainda não tem previsão de estreia no streaming)
Summer of Soul (2021)
Ganhou o Oscar, o Bafta e o troféu da Associação dos Produtores dos EUA. Como indica o subtítulo — (...ou Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada) —, resgata um evento que havia sido apagado da memória "oficial". É o Harlem Cultural Festival, que, por seis finais de semana seguidos, em 1969, reuniu alguns dos maiores nomes da música negra estadunidense da época: Stevie Wonder, Nina Simone, B.B. King, Sly & the Family Stone, Gladys Knight & The Pips, The 5th Dimension... O filme dirigido pelo produtor musical, DJ e jornalista Ahmir "Questlove" Thompson intercala as apresentações com depoimentos de artistas e de pessoas comuns que ajudaram a lotar um parque no Harlem, bairro de Nova York. Há uma narrativa brilhante que vai dando conta do contexto social, político e cultural, da luta contra o racismo, do papel do gospel ("Nós não vamos ao psiquiatra, nós vamos à igreja", diz um dos espectadores) e da valorização das origens africanas. Explica-se, por exemplo, por que a população negra dos EUA deu tão pouca bola à chegada do homem à Lua, ocorrida em meio ao festival. Summer of Soul ganhou o prêmio especial do júri e o troféu do público no Festival de Sundance e está indicado também ao Bafta nas categorias de documentário e edição. (Foi exibido pelo Telecine em janeiro e fevereiro. Deve voltar em breve ao streaming, mas em outra plataforma)
Titane (2021)
Julia Ducournau fez história no Festival de Cannes do ano passado. Primeiro por apresentar um filme em que a personagem principal é uma assassina serial que faz sexo com um carro — deve ter sido ousadia demais para a Academia de Hollywood, que deixou Titane de fora da lista dos 15 semifinalistas do Oscar de melhor longa internacional. Depois porque, quase 30 anos após a conquista da neozelandesa Jane Campion com O Piano (1993), a diretora e roteirista francesa tornou-se a segunda mulher na história a ganhar a Palma de Ouro.
Como em Raw (2016), a cineasta tem uma jovem como protagonista e trabalha questões como identidade e sexualidade — na obra anterior, uma vegetariana que estuda Veterinária vira canibal. Para tanto, Ducournau não se furta de lançar mão de imagens perturbadoras e da violência gráfica. O corpo, seja o da atriz Agathe Rousselle, que interpreta a dançarina Alexia, seja o do ator Vincent Lindon, que encarna um bombeiro à procura do filho desaparecido, é um personagem à parte em Titane. "Eu sou muito, muito interessada em corpos. Gosto muito de filmá-los e gosto de usar os corpos dos meus personagens para falar sobre a sua psique", disse ela em entrevistas. "O que adoro na gramática do terror corporal é que, se você desligar o som da TV e assistir ao filme, não só ainda entende o enredo, como também entende o que está acontecendo dentro do personagem e como ele se sente, porque é retratado em sua pele e em seu corpo." (MUBI)
A Tragédia de Macbeth (2021)
Escrita por William Shakespeare entre 1603 e 1607, Macbeth é uma peça tão atemporal no retrato que faz da ambição humana, da corrupção do poder e do peso da culpa, que está sempre ganhando novas adaptações. A atual é a primeira produção que o cineasta estadunidense Joel Coen realiza sem a companhia do irmão, Ethan Coen, com quem assinou, entre outros títulos, Barton Fink: Delírios de Hollywood (1991), Fargo (1996) e Onde os Fracos Não Têm Vez (2007). Por um lado, em A Tragédia de Macbeth o diretor mantém a ambientação medieval e preserva o texto original, com a linguagem poética, irônica e plena de metáforas concebida por Shakespeare. Por outro, como um reflexo de nossa época, mais inclusiva, escala um punhado de atores negros para personagens importantes — a começar pelo protagonista, Denzel Washington (indicado ao Oscar), e por Corey Hawkins, que interpreta Macduff. Merecidamente, também disputou as estatuetas douradas de melhor fotografia e design de produção. (Apple TV+)
Turma da Mônica: Lições (2021)
Lançado nos cinemas em 30 de dezembro de 2021, foi o filme brasileiro de verão em 2022, atraindo 500 mil espectadores nas primeiras duas semanas de exibição. Baseado na homônima história em quadrinhos dos irmãos Vitor Cafaggi e Lu Cafaggi e dirigido por Daniel Rezende (o mesmo de Laços, de 2019), Turma da Mônica: Lições tem ares de Universo Cinematográfico Marvel. Pais, fiquem tranquilos: os personagens criados por Mauricio de Sousa não descambam para a pancadaria típica dos Vingadores nem acessam algum tipo de realidade alternativa, como no recente Homem-Aranha: Sem Volta para Casa. Mas, sim, o coelho Sansão é sacudido tanto quanto o martelo de Thor, há uma dupla ameaça física a nossos heróis mirins e o que acontece em uma peça de teatro — ou seja, em uma dimensão paralela — tem impacto dramático no mundo real. E mais: a exemplo da franquia inspirada nos quadrinhos estadunidenses, a adaptação do gibi brasileiro homônimo investe no povoamento do bairro do Limoeiro (estreiam Tina, Rolo e Franjinha, entre outros) e em cenas pós-créditos carregadas de surpresa, encanto e promessa. (Amazon Prime Video)
Bônus: Onde Eu Moro (2021) / Três Canções para Benazir (2021)
Concorreram em uma categoria do Oscar muito pouco badalada, a de melhor documentário em curta-metragem. Em Onde Eu Moro, o brasileiro Pedro Kos divide com o estadunidense Jon Shenk a direção deste olhar humanizante sobre pessoas que vivem nas ruas, nos parques e em abrigos de Los Angeles, San Francisco e Seattle. Três Canções para Benazir, dirigido pelo casal Elizabeth Mirzaei e Gulistan Mirzaei, conta a história de um jovem afegão recém-casado que tenta entrar no exército para ter uma vida menos miserável. É tão lindo quanto arrasador. (Ambos na Netflix)