Dois fenômenos sociais contemporâneos — o cancelamento e o negacionismo — formam uma tempestade (quase) perfeita em Granizo (2022), comédia do argentino Marcos Carnevale que, nesta quinta-feira (7), ocupava o primeiro lugar no top 10 da Netflix. Quase porque o filme não é tão bom quanto promete ser em seu início.
Carnevale, 58 anos, é o mesmo cineasta de Elsa e Fred (2005, indisponível no streaming), comédia romântica sobre a terceira idade que fez enorme sucesso de público e ganhou refilmagem em Hollywood; de Anita (2009, no Amazon Prime Video), drama sobre uma jovem com Down que se vê no meio de um turbilhão quando ocorre o atentado à Associação Mutual Israelita Argentina, em 1994, em Buenos Aires; e de Muito Amor pra Dar (2020, na Netflix), que pratica um humor anacrônico e misógino ao narrar as desventuras de um homem com duas famílias. Antes de Granizo, lançou A Salinha (2021, na HBO Max), comédia dramática sobre cinco estranhos que, ao desembarcarem em Porto Rico, são confinados pelas autoridades de imigração em "El Cuartito". E, num caminho inverso ao de Elsa e Fred, assinou Inseparáveis (2016, fora de catálogo), a versão argentina do popularíssimo filme francês Intocáveis (2014).
Nesses cinco títulos, Carnevale atuou também como roteirista. Em Granizo, ele dirige uma história escrita por Fernando Balmayor e Nicolás Giacobone, um dos autores premiados com o Oscar e com o Globo de Ouro por Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) (2014), e que também trabalhou no script de Biutiful (2010), de O Último Elvis (2012) e de Animal (2018).
O personagem principal é interpretado por Guillermo Francella, 67 anos, que despontou fazendo comédias na TV argentina e que, no cinema, já foi visto como o engraçado parceiro de Ricardo Darín em O Segredo dos seus Olhos (2009), o patriarca de uma família que sequestrava parentes de empresários em O Clã (2015), o negociante de arte em Minha Obra Prima (2018) e o pai de família que precisa de um transplante de rim no já citado Animal. Em Granizo, ele encarna Miguel Flores, um célebre meteorologista de Buenos Aires em vias de aumentar sua popularidade: quando o filme começa, ao som da contagiante e grudenta canção Felicità (1982), um pop eletrônico do duo italiano Al Bano & Romina Power, o protagonista está se preparando para a estreia de um programa em horário nobre (21h45min) na televisão, El Show del Tiempo.
Sua previsão do tempo, a de céu limpo e sem chuva na noite portenha, revela-se um tremendo erro: a cidade é atingida por uma grande tempestade de granizo. A interação de Flores com os fãs, na calçada em frente a seu apartamento, permite antever as consequências — mas elas não deixam de ser morbidamente divertidas.
Aí entra a cultura do cancelamento. Flores estudou meteorologia durante anos, tem décadas de experiência na profissão e nunca havia errado um prognóstico, mas no primeiro equívoco cai em desgraça junto à opinião pública e acaba afastado de seu próprio programa. É substituído por Mery Oliva (Laura Fernández), uma espécie de vedete, com um chihuahua a tiracolo, que havia sido escalada para ajudar a alavancar a audiência — vivemos a sociedade do espetáculo, vale lembrar.
Desmoralizado (um espelho do descrédito na ciência observado durante a pandemia, a exemplo do que é visto em Não Olhe para Cima) e até ameaçado — o comportamento dos outrora seguidores do meteorologista remete ao dos torcedores de futebol que se sentem no direito de agredir jogadores quando o time perde —, Flores viaja para Córdoba, cidade a quase 700 quilômetros de distância da capital argentina. Lá, ele tenta se reaproximar da filha, Carla (Romina Fernandes), em uma subtrama melodramática que acaba se estendendo demais. Em paralelo, há uma outra subtrama, a de um taxista cujo carro foi danificado pelo granizo, que só não chega a ser totalmente desnecessária por causa das piadas envolvendo a companhia de seguro.
É em Córdoba que o filme amplia a conexão entre o cancelamento e o negacionismo, entre a instantaneidade e o curandeirismo. Tomo emprestadas as palavras de Luiz Marques, professor de Ciência Política na UFRGS e ex-secretário de Estado da Cultura. No e-mail que me enviou para recomendar Granizo, ele escreveu: "Flores conhece um ermitão bombachudo que mora numa cabana isolada da civilização, sem eletricidade. Sem informações avalizadas por pareceres científicos com base em recursos tecnológicos avançados, o velho que toma mate com grapa se diz capaz de acertar até o exato minuto em que vai ocorrer uma intempérie — contrariando todas as previsões baseadas em instrumentos técnicos com informações de satélites sobre a evolução atmosférica. Numa volta às superstições medievais, o protagonista encontra a 'cloroquina' que vai devolver-lhe a credibilidade fantasiosa reclamada por um mundo que, diante de transformações velozes, busca refúgio nas mentiras que se mostram mais reconfortantes do que a verdade nua e crua sobre a realidade e os limites do saber humano".