Recém-lançado pela HBO Max, Kimi (2022) é mais um filme que, a exemplo de Match Point: Ponto Final (2005) e Pig: A Vingança (2021), ganha no Brasil um subtítulo desnecessário, além de tirar a carga de mistério do original: Alguém Está Escutando.
Pelo menos o adendo é honesto. Este suspense tem como personagem principal Angela Childs, uma analista do fluxo de dados de uma assistente virtual tipo Alexa e Siri — a Kimi. O trabalho de Angela é ouvir gravações das interações dos clientes com o produto, de modo a aperfeiçoar a inteligência artificial, que nem sempre entende os pedidos feitos. De cara, o filme nos lembra que segurança e privacidade são temas sensíveis em meio aos avanços tecnológicos.
O enxuto (1h29min) longa-metragem foi escrito por David Koepp, roteirista responsável pelas adaptações cinematográficas de Jurassic Park (1993), Missão: Impossível (1996), Homem-Aranha (2002) e Anjos e Demônios (2009), entre outros títulos. A direção é de Steven Soderbergh, cineasta que desde a volta de uma aposentadoria prematura vem emendando um filme depois do outro: Logan Lucky (2017), Distúrbio (2018), High Flying Bird (2019), A Lavanderia (2019), Let Them All Talk (2020), Nem um Passo em Falso (2021) e agora Kimi, no qual, como de costume, também assina fotografia e a montagem, sob os pseudônimos Peter Andrews e Mary Ann Bernard.
A protagonista é interpretada por Zoë Kravitz, filha da atriz Lisa Bonet e do roqueiro Lenny Kravitz, a Leta Lestrange da franquia Animais Fantásticos e a Selina Kyle do vindouro Batman. Angela trabalha em casa e sofre de agorafobia, que foi potencializada pela pandemia: ela não consegue vencer o medo de deixar o apartamento para se encontrar com Terry (Byron Bowers), o vizinho do prédio da frente com quem mantém uma espécie de romance. Sua ansiedade vai aumentar quando escutar o áudio do que parece ser um crime cometido por um homem contra uma mulher.
O parágrafo acima permite inferir que Kimi faz uma modernização de clássicos do gênero, como Janela Indiscreta (1954), de Alfred Hitchcock — e a orquestração da trilha sonora composta por Cliff Martinez reforça o tom hitchcockiano —, Blow-Up: Depois Daquele Beijo (1966), de Michelangelo Antonioni, A Conversação (1974), de Francis Ford Coppola, e Um Tiro na Noite (1981), de Brian De Palma (a imagem de Angela pressionando os fones contra os seus ouvidos remete à de John Travolta nesse último filme). As características psicológicas de Angela sugerem uma aproximação com uma vertente da literatura e do cinema de suspense (vide A Mulher na Janela e sua paródia, A Vizinha da Mulher na Janela), a das protagonistas solitárias que testemunham um ato criminoso, mas são desacreditadas por causa de seus problemas de saúde mental — às vezes, elas próprias já não sabem distinguir a realidade da ilusão.
O que aconteceu com a tal cliente e como Angela vai lidar com a situação são coisas que cabem ao espectador descobrir. O que dá para dizer, sem escorregar para o terreno dos spoilers, é que, como este é um filme de Steven Soderbergh, o entretenimento paranoico/conspiratório está aliado ao comentário crítico. O alvo evidente são as chamadas big techs, as grandes empresas de tecnologia, patrocinadoras, por omissão e por interesse econômico, de discursos de ódio, misoginia, racismo, negacionismo etc., artífices de um mundo sob constante vigilância e com uma tênue fronteira entre vida pública e vida privada, vida pessoal e vida profissional.
Na comparação com as obras anteriores do diretor, Kimi não é tão visualmente inventivo quanto Distúrbio, não tem a acidez de High Flying Bird e carece do elenco carismático de Nem um Passo em Falso. Mas, além de contar com uma atuação vigorosa de Zoë Kravitz, Soderbergh compensa com sua maestria no ritmo — sabe a hora de criar clima ou de acelerar o passo — e com a habilidade para amarrar pontas, juntar peças. Apesar da tensão e da violência de algumas cenas, é difícil não esboçarmos um sorriso ao perceber que elementos jogados despretensiosamente na trama são, lá na frente, retomados com protagonismo.