Cérebro e músculos se harmonizam em Reacher, série em oito episódios do Amazon Prime Video que, graças ao sucesso imediato de público (logo após a estreia, em 4 de fevereiro, era uma das cinco atrações mais assistidas globalmente na plataforma de streaming), foi renovada para uma segunda temporada.
O seriado de ação e investigação é baseado no livro Dinheiro Sujo (Killing Floor, 1997), a aventura inicial das 22 já protagonizadas por Jack Reacher — nove foram lançadas no nosso país, pela editora Bertrand Brasil. Trata-se de um militar aposentado que passou a viver como um nômade, pagando tudo em dinheiro e não deixando qualquer tipo de rastro digital (não tem celular nem redes sociais). Cada livro se passa em um lugar: Chicago, Nova York, o sul da Flórida, o escaldante Texas... A cada parada, Reacher lida com assassinos, ladrões, sequestradores, autoridades corruptas...
O personagem criado pelo escritor inglês radicado em Nova York Lee Child apareceu em dois filmes estrelados por Tom Cruise, Jack Reacher: O Último Tiro (2012) e Jack Reacher: Sem Retorno (2016). Apesar de não serem desastres de bilheteria — o primeiro fez US$ 218,3 milhões, e o segundo, US$ 162,1 milhões —, as versões cinematográficas não tiveram boa recepção junto à crítica nem aos fãs. Afinal, por maior que seja o carisma de Cruise, seu 1m67cm de altura o deixa bastante aquém da descrição física do herói, um armário de quase dois metros e mais de 100 quilos. Além disso, o astro já era cinquentão quando pegou o papel — estava "velho demais", segundo o autor.
Daí que o primeiro acerto do responsável pela adaptação, Nick Santora, um dos roteiristas e produtores de Prison Break (2005-2009/2017) e criador de Scorpion: Serviço de Inteligência (2014-2018) e O Fugitivo (2020), foi escalar como protagonista Alan Ritchson. O ator estadunidense tem 37 anos (a mesma idade do personagem em Dinheiro Sujo) e 1m88cm. Parece maior por causa de truques de câmera, como o enquadramento de baixo para cima, e de coadjuvantes com altura bem inferior: Malcolm Goodwin (o Clive Babineaux do seriado iZombie), que interpreta o detetive engomadinho Finlay, mede 1m71cm, e Willa Fitzgerald (protagonista das séries Scream e Não Provoque), a jovem policial Roscoe, 1m65cm. Ritchson, que já tinha experiência com cenas de ação — encarnou o Rapina em 18 episódios de Titãs (2018-2021) —, conta que comeu muita pizza e puxou muito ferro para ganhar 13 quilos e virar o brutamontes que vemos na tela.
Mas Reacher é um brutamontes com QI extraordinário, uma espécie de Sherlock Holmes marombado. Sua atenção aos detalhes possibilita deduções desconcertantes. O bacana é que a série não recorre a flashbacks para revelar esses detalhes: estavam à tona o tempo todo, ainda que o espectador possa não ter percebido. O que nosso herói faz é amarrá-los para traçar um perfil psicológico ou montar uma tese investigativa.
Reacher também tem senso de humor — às vezes involuntário, como quando emprega sua lógica implacável em situações nas quais um pouco de tato cairia bem (só que ele não se furta de mentir se seu instinto protetor recomendar a omissão ou a invenção). E Reacher é dado a prazeres culturais e gastronômicos. É à procura de informações sobre um lendário músico de blues, Blind Blake (1896-1934), que ele vai parar na fictícia cidadezinha de Margrave, na Geórgia. Quando está prestes a experimentar a famosa torta de pêssego de uma cafeteria local, a polícia chega e prende o protagonista. A acusação? O bárbaro homicídio a que assistimos na abertura da série. Mas há um problema: o gerente de câmbio em um banco também assume a autoria do crime.
Eis o ponto de partida de uma trama que a cada episódio vai desvendar mais da vida interior e do passado dos personagens — aí, sim, flashbacks nos levam à infância de Reacher e ajudam a entender o homem que ele se tornou. A cada capítulo, também aumentam os mistérios, as ameaças e a contagem de mortos.
Vale dizer que Reacher é uma série violenta, mas menos do que poderia ser. O desenvolvimento dramático ocupa o maior tempo da história, o que constitui outra decisão acertada: quando a ação toma o centro do palco, mostra-se espetacular — em especial na coreografia dos combates corpo a corpo.
A série dispensa o sadismo e aposta na catarse. Há assassinatos tenebrosos, mas evita-se mostrar o sofrimento das vítimas — só acompanhamos o antes e o depois, nunca o durante. A não ser que essas vítimas sejam pessoas malvadas em quem Reacher bota as mãos — daí, podemos até vê-lo quebrar as pernas de um defunto para fazer caber em um porta-malas. Vê-lo e ouvi-lo: os efeitos de sonoplastia são impactantes.
Por falar em som, a trilha desempenha um papel importante em Reacher. A música composta por Tony Morales (parceiro de Nick Santora em Scorpion e O Fugitivo) realça, com suas distorções e seus elementos percussivos, a atmosfera de perigo e agressividade. Já as canções de blues, como Smokestack Lightnin' (Howlin' Wolf) e Mama Got Worried (Corey Harris), reforçam a simplicidade e a crueza da narrativa. Este é um seriado que sabe exatamente o que é e o que não é: um entretenimento enxuto e conciso (os episódios duram de 41 a 54 minutos), com vibração oitentista, reviravoltas, pancadaria, tiroteio, alívios cômicos — preste atenção nas repetições de frases de um personagem por outro, em contextos diferentes — e até um pouco de romance, sem muitas pretensões estilísticas (a propósito, há oito diretores, um para cada capítulo, mas o trabalho é bastante uniforme) nem ambições sociopolíticas (embora não deixe de pontuar o racismo marcante do Sul dos Estados Unidos, por exemplo).
Em resumo: comece a assistir a Reacher o quanto antes. E prepare-se para lidar com a ansiedade pela estreia da segunda temporada do mais novo herói do pedaço.