Embora o primeiro se passe na Irlanda do Norte e o segundo, na Califórnia, embora a fotografia do primeiro seja em preto e branco e a do segundo, colorida, embora o autor do primeiro tenha empregado elementos autobiográficos e o segundo, se baseado na vida de outra pessoa, Belfast, de Kenneth Branagh, e Licorice Pizza, de Paul Thomas Anderson, guardam muitos pontos de conexão.
Os dois títulos valeram a seus realizadores três indicações ao Oscar, nas mesmas categorias: melhor filme (Branagh divide a honra com as produtoras Laura Berwick, Becca Kovacik e Tamar Thomas, e PTA, com Sara Murphy e Adam Somner), direção e roteiro original. Os dois cineastas agora somam várias nomeações ao prêmio da Academia de Hollywood — oito no caso do norte-irlandês, 11 no do californiano —, mas nunca venceram.
Em cartaz a partir desta quinta-feira (10) nos cinemas, Belfast inscreveu o nome de Kenneth Branagh no livro dos recordes do Oscar. Aos 61 anos, ele é a primeira pessoa a disputar sete categorias diferentes. A história começou com Henrique V (1989), pelo qual recebeu indicações a diretor e ator. Swan Song (1992) concorreu entre os curtas de ficção. Hamlet (1996) valeu vaga na briga dos roteiros adaptados. Na pele de Sir Laurence Olivier, em Sete Dias com Marilyn (2011), foi indicado como ator coadjuvante. Dez anos depois, além de voltar à disputa do troféu de direção, estreia nas categorias de melhor filme e roteiro original (laureado no Globo de Ouro).
Paul Thomas Anderson, 51 anos, é um dos grandes cineastas surgidos no final do século 20. Já foi premiado nos três principais festivais da Europa. Em Cannes, faturou o troféu de diretor por Embriagado de Amor (2002). Em Veneza, o Leão de Prata por O Mestre (2012). Em Berlim, o Urso de Ouro por Magnólia (1999) e o Urso de Prata por Sangue Negro (2007). Falta um Oscar. Antes de Licorice Pizza, que em Porto Alegre segue em cartaz no Cine Grand Café e no GNC Moinhos, recebeu três indicações por Sangue Negro (filme, diretor e roteiro adaptado), duas por Trama Fantasma (2017, filme e direção) e competiu com os scripts de Boogie Nights (1997), Magnólia e Vício Inerente (2014).
Os dois realizadores propõem um olhar nostálgico para épocas próximas — Belfast está ambientado em 1969, e Licorice Pizza, em 1973 —, dosando drama e comédia e caprichando na reconstituição e na memorabilia (vide os figurinos, os penteados e a própria cor do filme no segundo caso, vide o joguinho de futebol, a fantasia de Thunderbirds e outros presentes de Natal no primeiro).
Em Belfast, Branagh, nascido em 1960, imprimiu suas lembranças do início de um conturbado, longo e sangrento período conhecido como The Troubles (Os Problemas). A Irlanda do Norte era palco de atos de violência. Em maioria, a população protestante queria preservar a união com a Grã-Bretanha — daí seus manifestantes serem chamados de unionistas. Em minoria, os católicos defendiam a independência ou a integração com a Irlanda. A cena de abertura mostra um dos distúrbios ocorridos em agosto de 1969, em Belfast, onde protestantes quebraram janelas e incendiaram carros para intimidar famílias católicas. Até a assinatura de um acordo de paz, em 1998, mais de 3,5 mil pessoas morreram, sendo metade delas civis.
Em Licorice Pizza, PTA, que nasceu em 1970, inspirou-se em histórias contadas por Gary Goetzman, hoje um produtor cinematográfico de 69 anos, para criar o personagem Gary Valentine. Goetzman foi um ator infantojuvenil que contracenou com Lucille Ball e Henry Fonda em uma comédia bem-sucedida nas bilheterias, Os Seus, os Meus e os Nossos (1968), sobre um viúvo com 10 filhos que se casa com uma viúva com oito filhos. Também era um empreendedor precoce: como vemos no filme, de fato abriu uma empresa de camas d'água e um fliperama.
Em ambos os filmes, há o ponto de vista de um protagonista muito jovem: no primeiro, um menino de nove anos; no segundo, o de um adolescente de 15 anos.
Os dois são interpretados por encantadores atores estreantes. Por Belfast, Jude Hill, hoje com 11 anos, foi indicado ao prêmio de revelação do British Independent Film Awards, destinado às produções britânicas com orçamento não superior a US$ 20 milhões. Por Licorice Pizza, Cooper Hoffman, que comemora 19 anos neste mês, disputou o Globo de Ouro e concorre ao troféu de novos talentos no Critics' Choice Awards, concedido por uma associação de críticos de TV, rádio e online dos Estados Unidos e do Canadá.
O loirinho vivido por Hill é muito parecido com o próprio Kenneth Branagh, mas o diretor fez questão de evitar a personalização da história. Para criar um senso de universalidade, os personagens tem nomes genéricos. Ao protagonista, só se referem como Buddy, apelido que significa companheiro. Jamie Dornan encarna o Pa (Pai), Caitriona Balfe é a Ma (Mãe), Ciáran Hinds, o Pop (vô), e Judi Dench, a Granny (vovó).
Cooper é filho de Philip Seymour Hoffman (1967-2014), ator que ganhou o Oscar por Capote (2005) e colaborou com Paul Thomas Anderson em cinco filmes, como Boogie Nights e O Mestre (por este, concorreu ao troféu de melhor coadjuvante). Vê-lo e ouvi-lo na tela é como ver e ouvir uma versão remoçada do pai: ao mesmo tempo, podemos ser envoltos pela dor de uma saudade tremenda e pela promessa de um futuro radiante.
Buddy e Gary nutrem uma paixão platônica e fazem de tudo para impressionar a garota. A diferença crucial é que em Belfast o namorico infantil é apenas uma subtrama no drama da família protestante que, diante da escalada das tensões e dos confrontos, vê-se no dilema de ficar ou ir embora; enquanto o eixo de Licorice Pizza é a tentativa do protagonista de engatar um romance com Alana Kane. O problema é que ela é 10 anos mais velha — já está com 25. Com uma energia tão contagiante quanto a de Cooper Hoffman, o papel é vivido por outro nome novo no cinema: a cantora Alana Haim, 30, integrante da banda Haim, da qual Paul Thomas Anderson já dirigiu videoclipes, e indicada ao Bafta de melhor atriz.
Tanto Brannagh quanto PTA adotam uma narrativa episódica, ainda que em Belfast a progressão seja mais cristalina, com um início, um meio e um fim, com conflito e resolução, e, por empregar a perspectiva de uma criança, com o flanco aberto para críticas quanto a uma abordagem considerada inocente demais para uma situação tão complexa, envolvendo temas políticos, religiosos e morais; enquanto em Licorice Pizza a trama é menos objetiva e dada a imprevistos, uma coleção de memórias não necessariamente conectadas umas às outras — algumas empolgantes (as aventuras bizarras de Gary e Alana), outras questionáveis (as cenas supostamente cômicas — e definitivamente sobrantes nos 133 minutos — de um empresário branco com suas esposas japonesas).
Por fim, tanto em Licorice Pizza quanto em Belfast o próprio cinema tem um papel importante.
No filme de Paul Thomas Anderson, isso é mais evidente, afinal, Gary Valentine é um ator; Sean Penn faz um dos coadjuvantes, Jack Holden, uma paródia de Willian Holden, oscarizado por Inferno Nº 17 (1953); graças ao negócio das camas d'água, o protagonista conhece o excêntrico Jon Peters (em atuação perversamente divertida de Bradley Cooper), então cabeleireiro e maquiador das celebridades de Hollywood e namorado da atriz e cantora Barbra Streisand, e às vésperas de ingressar na carreira de produtor cinematográfico com Nasce uma Estrela (1976); e é aos pés do letreiro de um cinema que exibe Com 007 Viva e Deixe Morrer (1973) que ocorre uma cena arrebatadora.
Na obra de Kenneth Branagh, o cinema é o refúgio para a família de Buddy, o lugar onde o menino alimenta seus sonhos e sua imaginação. Não por caso, as cenas do filme a que eles assistem, o musical infantil O Calhambeque Mágico (1968), são mostradas no esplendor do seu technicolor, contrastando com a realidade cinza e ensombrecida.