Um olhar doce e nostálgico para uma época em que o colchão de água era novidade e o pinball era um vício proibido. Também uma história de amadurecimento juvenil. Com três indicações ao Oscar deste ano — melhor filme, melhor direção e melhor roteiro original —, Licorice Pizza chega aos cinemas nesta quinta-feira.
O filme foi escrito e dirigido por Paul Thomas Anderson, responsável por obras aclamadas como Boogie Nights (1997), Magnolia (1999), Sangue Negro (2007) e Trama Fantasma (2017). Ambientado em 1973, Licorice Pizza tem como cenário San Fernando Valley, vale urbanizado no noroeste de Los Angeles onde o cineasta passou boa parte de sua vida. Anderson apresenta um retrato afetivo da vizinhança e de seus lugares, promovendo uma ensolarada fotografia trabalhada em película de 35mm.
Embalado pela nostalgia, o diretor recria o restaurante Tail O' The Cock — por onde passavam estrelas hollywoodianas, além de ser um local de muitas memórias para o diretor — e filma na Portola Middle School, onde surgiu a premissa do longa e sua cena de abertura. Anos atrás, Anderson passou em frente à escola e observou alguns jovens alinhados para uma sessão de fotos. Ele notou que um menino insistia em incomodar uma garota uniformizada e concluiu que dessa cena sairia um filme.
Passados alguns anos, Anderson conheceu o produtor Gary Goetzman, de quem o diretor sugaria as recordações para Licorice Pizza. Assim como o protagonista, Goetzman foi ator infantil e proprietário de uma loja de colchões de água. Muitos dos eventos do filme são inspirados na vida dele, como a entrega de colchão na casa de Jon Peters (insanamente interpretado por Bradley Cooper) — ex-cabeleireiro e maquiador, que depois trabalharia com a produção de filmes —, então namorado de Barbra Streisand. Mas cabe uma ressalva de que nada teria sido tão dramático como o longa retrata.
A trama parte do encontro de Gary Valentine, 15 anos, com Alana Kane, 25, em uma sessão de fotos para a escola em que ele estuda. Ambos personagens são interpretados por duas estreias na atuação: Gary é vivido por Cooper Hoffman, filho de Philip Seymour Hoffman (1967-2014), com quem Anderson trabalhou em algumas ocasiões; já a jovem adulta é vivida por Alana Haim, integrante da banda Haim, que o cineasta já dirigiu em alguns vídeos. Aliás, os pais e irmãs de Alana também fazem uma ponta em Licorice Pizza.
Cheio de lábia e cara de pau, Gary flerta na sessão de fotos com Alana, que não o leva a sério pela diferença de idade. Ele a convida para jantar e, talvez por falta de algo melhor para fazer, ela acaba comparecendo ao encontro. A partir daí, surge uma amizade e parceria profissional, em que os sentimentos românticos se tornam um elefante branco na sala.
Gary é um ator infantil que não vem obtendo o sucesso esperado. Porém, é dotado de um senso de oportunidade e espírito empreendedor do tipo que inspiraria textões no LinkedIn. Seus projetos vão da venda de colchões de água a loja com máquinas de pinball. Por outro lado, Alana se encontra em momento estagnado profissionalmente, sentindo-se em um limbo existencial. Ela deixa seu trabalho para acompanhar as empreitadas de Gary, com quem se diverte e é acolhida, mas o tempo todo se questiona sobre o que está fazendo com a sua vida.
Carregada de humor e imprevisibilidade, a narrativa de Licorice Pizza é ágil e episódica, trazendo uma série de eventos e presepadas para Gary e Alana — em uma dessas desventuras, há participação de Sean Penn e Tom Waits. O texto de Anderson é tão envolvente que Alana e Hoffman absorvem os personagens. Aliás, a química e o relacionamento que se desenvolve entre eles amplificam duas atuações cativantes. Alana, em especial, passeia com êxito entre momentos cândidos e ásperos da personagem.
No entanto, há pontos que podem causar incômodos em Licorice Pizza: há quem diga que o filme seja inadequado por promover um possível romance entre um adolescente e uma adulta, enquanto seus defensores argumentam que se trata de uma representação de um amor juvenil. De fato, a relação entre os dois é construída com sensibilidade.
O filme também tem sido criticado pela piada envolvendo um empresário branco (John Michael Higgins), que se casa com mulheres asiáticas e usa um sotaque japonês para falar com elas, soando ofensivo e desnecessário. Sobre esse ponto, Anderson ressalta que o filme é um retrato de seu tempo, os anos 1970. No caso, ele apenas apresenta aquela sociedade e seu jeito de pensar, sem a intenção de elaborar uma crítica ou inserir o olhar de hoje. Mesmo assim, essa cena racista sobra no longa, assim como outras inofensivas.
Há muita gordura no filme: com 133 minutos, Anderson enche o longa de subtramas e elementos que não fariam falta. O último terço da trama, por exemplo, parece ser de outro filme. É como se o cineasta estivesse com dificuldade de colocar um ponto final no texto, quando poderia ter amarrado a narrativa com mais coesão com alguns cortes.
Contudo, Licorice Pizza não deixa de ser um trabalho exitoso de Anderson. Com sua ambientação setentista bem executada, o filme pode remeter a Jovens, Loucos e Rebeldes (1993), de Richard Linklater, mas também ecoar Ensina-Me a Viver (1971), de Hal Ashby. O melhor está em Alana e Gary, que refletem o resultado do filme: duas pessoas confusas tentando, desajeitadamente, encontrar um rumo — nem sempre a trajetória dá certo, mas não deixa de ter seu sentido inusitado e proveitoso.