O Festival do Amor, que entra em cartaz nesta quinta-feira (6) nos cinemas, após um período em pré-estreia, preenche uma cartela de bingo de Woody Allen: tem o intelectual em crise criativa; há relacionamentos com considerável diferença de idade; vemos chifres sendo distribuídos; personagens que se sentem presos em seus matrimônios; e diálogos que flutuam entre erudição, questionamentos existenciais e tolices. Só que, desta vez, o cineasta também promove um tributo à história do cinema — uma carta de amor a ídolos como Ingmar Bergman, Luis Buñuel e François Truffaut.
Aqui, o alter-ego de Allen é interpretado por Wallace Shawn, de Meu Jantar com André (1981) e que já trabalhou com o cineasta em outras oportunidades, como o clássico Manhattan (1979). Shawn entrega com êxito um protagonista típico do diretor: judeu, nova-iorquino, paranoico e com humor ácido. Ou seja, mais um feijãozinho para pôr na cartela do bingo. Ele é Mort Rifkin, um ex-professor de cinema que se sente frustrado por não conseguir escrever o grande romance que almeja — uma obra-prima que se equipare a Dostoiévski, apenas.
Mort viaja para a Espanha para acompanhar sua esposa, Sue (Gina Gershon), no Festival Internacional de Cinema de San Sebastián. No caso, o longa retoma a tendência que o cineasta adotou em algumas produções nas últimas duas décadas de sair de Nova York e filmar em uma cidade europeia — como a Londres de Match Point (2005), Scoop – O Grande Furo (2006) e O Sonho de Cassandra (2007), além dos autoexplicativos Vicky Cristina Barcelona (2009), Meia-Noite em Paris (2011) e Para Roma, com Amor (2012). Em cenas que aproveitam a luz natural e a beleza da paisagem da cidade à beira-mar, acompanhamos Mort conhecer San Sebastián, em momentos que remetem mais a um programa de viagem do canal Multishow.
Sue trabalha como assessora de imprensa. Ela vive ocupada, sem muita disposição para passar algum tempo com o marido. Os dois já não estão mais na mesma sintonia. No festival, seu cliente é o jovem diretor francês Philippe (Louis Garrel). Com uma postura pretensiosa, o cineasta serve como um totem para as alfinetadas de Allen à indústria cinematográfica, debochando dos filmes com ambições politicamente positivas.
Com sua esposa passando muito tempo com Philippe, Mort passa a suspeitar que os dois tenham um caso. Começa a sentir dores no peito e, por isso, procura um médico. Ele é atendido pela Dra. Jo Rojas (Elena Anaya), algumas décadas mais jovem. Mort desenvolve uma paixão platônica por Jo — bela, inteligente e atenciosa. Chega ao ponto de inventar sintomas para se consultar com ela. Só que a médica vive um casamento conturbado com um pintor espanhol.
Ao longo de O Festival do Amor, Mort tem suas inseguranças e angústias reproduzidas em cenas do cinema clássico, que surgem em seus sonhos e devaneios. O protagonista e as pessoas que o rodeiam se inserem em filmes como Cidadão Kane (1941), de Orson Welles; 8 ½ (1963), de Fellini; Jules e Jim — Uma Mulher para Dois (1962), de Truffaut; O Anjo Exterminador (1962), de Buñuel; e Acossado (1960), de Jean-Luc Godard. Bergman, por quem o cineasta nutre profunda admiração, aparece com três filmes: Persona (1966), Morangos Silvestres (1957) e O Sétimo Selo (1957). Essas sequências metalinguísticas e divertidas transmitem a paixão de Allen pelo cinema, além de serem um dos pontos altos de O Festival do Amor.
Contudo, embora a atuação de Shawn seja uma das maiores virtudes do filme (entrega um Mort desconcertante, mas empático), seu personagem se perde em diálogos maçantes. O desenrolar do roteiro, que foi escrito por Allen, segue por caminhos que causam estranhamento. É difícil não achar inconvenientes as idas de Mort ao consultório da médica (talvez após a segunda consulta fosse o caso de pedir restrição policial).
Fãs de Allen costumam repetir que um filme menor do diretor é "melhor que muita coisa em cartaz". Talvez o jeito seja se apegar a esse mantra com O Festival do Amor. Reprisando elementos de longas anteriores do diretor, o filme pode ser familiar e confortável. É possível se divertir, como em uma partida de bingo.