Quem observar as apostas de Hollywood para 2021 (ou, talvez, para os próximos anos), vai se deparar com histórias e personagens bem familiares. Vai ter Keanu Reeves tirando seu sobretudo preto do guarda-roupa para Matrix 4, após 18 anos do último filme da franquia. Eddie Murphy volta a ser uma realeza africana visitando os Estados Unidos em Um Príncipe em Nova York 2, 33 anos depois. Top Gun – Maverick traz de volta Tom Cruise como piloto de caça após 35 anos (embora pareça que ele não envelheceu muito desde então).
Antigas histórias ganham novas versões como Duna, Mortal Kombat, Candyman e Amor, Sublime Amor. Quando a narrativa não é revisitada ou remodelada, há também as sequências (Missão: Impossível 7 e Velozes e Furiosos 9). Não é diferente com as séries da TV e do streaming: Sex and the City irá reunir três das quatro protagonistas; Gossip Girl voltará com novos personagens, mas trazendo as fofocas sobre os adolescentes ricos de Nova York; Um Maluco no Pedaço, que foi protagonizada por Will Smith, ganhará um reboot.
Vale pontuar as diferenças entre remake, reboot e revival — três tipos de formatos utilizados nessas reciclagens. Remake é uma história remodelada com rostos novos, mas com poucas alterações no enredo, como Sete Homens e um Destino (1960 e 2016). Reboot pode até ter personagens familiares, mas traz uma nova linha de narrativa, reescrevendo personagens e eventos, vide os filmes do Homem-Aranha. Já o conceito de revival é mais aplicado para atrações da TV: traz de volta o elenco principal de uma atração para uma nova temporada anos depois da original, como Sex and The City e Arquivo X.
Diante de tantos retornos, sequências e novas versões, surge a dúvida: por que há tanta reciclagem entre as principais apostas de bilheteria e de audiência? Secou a fonte da criatividade? Nostalgia é o que vende? É o que o público quer consumir? A indústria receia correr riscos com novas histórias? Bem, há alguns fatores a serem levados em consideração. A presença cada vez maior dessas reciclagens vai de encontro com uma procura dos estúdios por ideias seguras e adaptáveis a novos rostos e contextos. Ou seja, uma estratégia de mitigação de riscos.
Bola de segurança
No livro História do Cinema para Quem Tem Pressa (Editora Valentina), o crítico de cinema Celso Bernadin aponta que, a partir dos anos 1990, os estúdios assumiram a visão industrial/empresarial do cinema e cristalizaram a tendência das franquias, remakes e continuações. “Dentro dos padrões do estilo blockbuster, é muito mais econômico propagandear filmes cujos protagonistas já são familiares ao grande público do que investir na criação e na divulgação de novos heróis. Se tais protagonistas forem velhos conhecidos de outros meios – como livros, seriados de TV e histórias em quadrinhos –, melhor”, escreve o jornalista.
— Mais do que nunca, em Hollywood, o medo de errar é maior que a vontade de acertar — pontua Bernadin.
A dramaturga e roteirista Vana Medeiros, autora do livro Guia das Séries — Tudo Que Você Queria Saber Sobre As Mais Importantes Dos Últimos Anos (Editora Évora) ao lado de Priscila Harumi, corrobora com a ideia de que Hollywood busca lidar com pouca margem de erro, ainda mais trabalhando cada vez mais com cifras exorbitantes (Tenet, por exemplo, custou mais de US$ 200 milhões). O mesmo se repete com as séries, que podem dispender até centenas de milhões de dólares por temporada (Plantão Médico chegou a custar U$S 13 milhões por episódio).
— Isso é um dado do jogo que deixa a indústria menos propensa a experimentações, que não tenha grandes confirmações de que a aposta irá dar certo. Qual o grande atrativo do reboot, revival ou remake? Mitigo as chances de fracasso e diminuo bastante o risco — destaca Vana.
A mestre em comunicação Ana Bandeira realça que a reciclagem audiovisual é uma forma de garantir retorno imediato com personagens ou universos que já são reconhecidos pelo público. Consequentemente, quem sabe não possa atrair novos fãs a tiracolo.
— Você sabe que em certo ponto as pessoas vão experimentar, ver a versão que foi feita. Alguma fatia de audiência será garantida. Se isso vai dar certo ou não, são outros 500 — diz Ana.
Em entrevista publicada no site da ABC News, o especialista em cultura pop Walt Hickey atesta que os blocksbusters lançados no verão norte-americano (entre junho e setembro) tendem a seguir uma linha pré-estabelecida: ou é uma história encabeçada por um nome celebrado, seja ator ou diretor, ou é um filme que parte de uma história baseada em propriedade intelectual — no caso, reciclagem, sequência ou adaptação. "A ideia de que um Steven Spielberg, quando ainda era um ninguém, poderia produzir Tubarão (1975) e fazer dele o blockbuster de verão é coisa do passado".
Novas possibilidades
Ana ressalta que não se pode cair na armadilha de atribuir o aumento das reciclagens de histórias a uma suposta falta de criatividade na indústria. Ela sublinha que essa oferta se torna maior com mais opções de players, como as plataformas de streaming.
— Sempre houve essa busca por retomar tramas clássicas, que de tempos em tempos são revisitadas. Esse cenário com muitas plataformas para contar e distribuir histórias está permitindo que essa onda aumente ainda mais — afirma.
Ana indica também que, de uns anos para cá, há uma tendência de atualização de representatividade:
— Vemos muitas versões femininas para histórias centradas em personagens masculinos, como as versões de Caça-Fantasmas (2016) e 11 Homens e Um Segredo, que virou Oito Mulheres e Um Segredo (2018). Uma tendência de dar voz e um olhar feminino para histórias que são centradas na experiência masculina.
Valor afetivo
O fator nostalgia também conta. Ana aponta que o espectador costuma construir um valor afetivo maior com as séries, até por acompanhar essas atrações por mais tempo. Esse vínculo nostálgico tem sido explorado na TV e no streaming, vide os revivals de séries como Full House, Gilmore Girls e Will e Grace.
Vana também denota essa tendência à nostalgia no audiovisual, que se fortifica em um mundo de incertezas e instabilidades com a pandemia. Esse espectador nostálgico é um consumidor em potencial.
— Como que a gente reage quando a gente se depara com tamanho caos? Voltando para tempos que eram mais simples. É um mecanismo de proteção da mente humana. A indústria audiovisual se volta para momentos que simbolizam a infância da população jovem adulta de hoje, que é também a população que tem dinheiro, que escolhe onde quer gastar e onde investir no entretenimento também. A população economicamente ativa, com potencial de compra. É natural que seja o target da indústria — pontua.
Andres Kalikoske, doutor em Ciências da Comunicação e pesquisador do Processocom do Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos, relata que a indústria audiovisual sempre explorou narrativas do passado porque o consumo de produtos que oferecem matrizes narrativas previamente conhecidas pode ser uma experiência nostálgica interessante para o público.
— O que observamos nos últimos anos é uma aposta na memória afetiva dos consumidores, ou seja, os produtos não são apenas regravados, mas buscam explorar uma conexão referencial mais explícita com suas versões originais. Pode acontecer através de escolhas estéticas, de uma trilha sonora, de referências a outros produtos da época ou da inclusão de um ator ou de uma atriz que foram expressivos no passado. Por exemplo, Stranger Things, da Netflix, tem todos esses elementos — explica o pesquisador.
Kalikoske realça que a aposta dos produtores têm sido chamar a atenção de um público que, em algum momento, se conectou emocionalmente com aquelas narrativas. E, claro, muitas histórias também merecem ser recontadas, e o público espera por isso. Mas o pesquisador alerta:
— Acredito que nem todo produto audiovisual seja passível de reciclagem. Versões originais de um filme do Almodóvar, do Babenco ou do Bergman sempre serão obras-primas singulares, assim como acontece na televisão com produtos como Castelo Rá-Tim-Bum, dirigido pelo Cao Hamburger. São obras que dificilmente repetiriam o impacto de suas versões originais.