Três dos cinco indicados ao Oscar de melhor documentário em curta-metragem já podem ser vistos no Brasil — todos na Netflix: Onde Eu Moro (Lead me Home), que tem direção do brasileiro Pedro Kos e do estadunidense Jon Shenk, Audible, sobre um jogador de futebol americano de uma escola para surdos, e Três Canções para Benazir, estrelado por um jovem afegão recém-casado que tentar entrar no exército para ter uma vida menos miserável.
Dos cinco (os outros dois são The Queen of Basketball e When We Were Bullies), Onde Eu Moro é o único que chega ao Oscar sem ter vencido festivais ou pelo menos concorrido a premiações. Seu triste trunfo é abordar um tema que vem preocupando os Estados Unidos e que pode sensibilizar novamente a Academia de Hollywood, após a consagração do drama Nomadland em 2021: os sem-teto.
Segundo as estatísticas mais recentes, os números voltaram a crescer nos últimos anos. Em janeiro de 2020 — portanto, antes de a covid-19 agravar a crise econômica —, havia 580,4 mil pessoas (0,2% da população do país) morando nas ruas ou em abrigos. Para efeito de comparação, no Brasil, de acordo com estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de março de 2020 — ou seja, também sem o impacto da pandemia —, nessa situação estavam cerca de 222 mil habitantes (0,1%). Em Porto Alegre, as consequências do coronavírus contribuíram para que, em 2020, o contingente aumentasse 38,7% em relação a 2019, conforme levantamento da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc).
— É claro que fico muito feliz com essa indicação ao Oscar, mas o que mais quero é que o público se conecte com essas histórias, conheça essas pessoas e lembre disso quando encontrar alguém que está na rua — disse o carioca Pedro Kos, que desde a adolescência mora nos Estados Unidos, em entrevista à jornalista Cleide Klock, na CNN. — Foram vários anos (de 2017 a 2020) conversando com pessoas, indo a acampamentos e abrigos, falando com famílias inteiras que vivem nas ruas e não têm para onde ir no final do dia. O processo mexeu muito comigo, abriu os meus olhos de uma maneira que eu não esperava. Transformou a nossa vida, de como a gente vê a vida e nossa sociedade. Nossos vizinhos que moram na rua nos ensinaram que há muito mais coisas que nos unem do que nos separam.
Kos e Shenk têm bastante experiência com documentários. Como editor, o brasileiro dividiu com dois colegas o Emmy da categoria por A Praça Tahrir (2013, disponível na Netflix), que, pelo olhar dos jovens, acompanha a turbulência política no Egito a partir da revolução de 2011. O título ganhou o prêmio do público no Festival de Sundance e disputou o Oscar. Seus créditos de montador incluem Lixo Extraordinário (2010, Netflix), que concorreu ao Oscar, e Privacidade Hackeada (2019, Netflix), do qual ele foi um dos três roteiristas e que ficou entre os 15 semifinalistas. Já dirigiu dois longas documentais: Parceiros da Saúde (2017, Netflix), sobre o trabalho de médicos e ativistas para erradicar a tuberculose e o HIV em zonas rurais do Haiti, do Peru e de Ruanda, e Rebel Hearts (2021, Amazon Prime Video), sobre freiras que, na Los Angeles da década de 1960, enfrentaram o patriarcado da Igreja Católica e lutaram pela igualdade de gênero.
Shenk, que tem larga carreira como diretor de fotografia, conquistou prêmios com The Island President (2011), Uma Verdade Mais Inconveniente (2017) e Atleta A (2020) — estes dois últimos assinados em parceria com Bonni Cohen.
Com quase 40 minutos de duração e alinhado à corrente dos documentários observacionais, Onde Eu Moro foi filmado em três cidades da Costa Oeste: Seattle, San Francisco e Los Angeles. O título brasileiro desvirtua o original — a tradução de Lead me Home é Leve-me para Casa. E, de fato, embora alguns personagens mostrem seus endereços improvisados em barracas, carros ou abrigos, o que todos querem é um lar para chamar de seu.
Vide a canção country que encerra o filme, Endless Road (Estrada Sem Fim), composta por Hoyt Axton em 1978 e interpretada por Angel Olsen em 2014: "Talvez em algum lugar haja alguém esperando com um sorriso / E talvez haja um lugar para parar e descansar um pouco / E talvez você não fosse apenas um andarilho / E há uma estrada a percorrer que o leva de volta para casa / Ah, mas eu vou continuar viajando, continuo olhando o amanhecer / Até que eu possa colocar este corpo solitário no chão / E quando esse dia chegar, eu nunca mais irei vagar / E cada estrada que vejo vai me levar para casa".
Os motivos que deixaram em situação de rua os personagens do documentário são conhecidos dos brasileiros: desemprego, alcoolismo, drogas, desajuste familiar, violência doméstica etc. Também são comuns os riscos a que estão expostos: frio, fome ("Sentia que meu estômago estava colado às costas", conta uma mulher), o barulho do trânsito, agressões, abuso sexual...
Cada um encara de seu jeito.
— Estou aqui há dois. É muito tempo — comenta uma senhora.
— É engraçado: as situações vão ficando extremas e nem percebemos — diz uma mulher que vive dentro de um carro com a filha.
Uma pergunta que fica em aberto é por que um documentário que busca dar visibilidade aos sem-teto não identifica os personagens quando eles surgem em cena? Seus nomes aparecem somente ao final, nos créditos, mas desacompanhados dos rostos — de modo que só por dedução sabemos que Ronnie "Futuristic Astaire" Willis é o dançarino de rua astro de imagens poéticas em Los Angeles, e que Patricia Wilcox é a Patty que corre o risco de ser morta por um ex-companheiro no Echo Park, na mesma cidade.
Mas esse detalhe não compromete o olhar humanizante de Onde Eu Moro, muito bem expressado em palavras por Luis Rivera Miranda:
— Quando a polícia vem me enxotar, eu falo: eu sou como vocês, eu faço as mesmas coisas que vocês. Eu escovo os dentes, eu como, mas faço tudo isso em vários lugares. Todos os outros fazem tudo isso dentro de um só lugar. Mas faço as mesmas coisas que todo mundo faz. Nada de diferente.
É um dos muitos depoimentos tocantes do documentário. Talvez um dos mais arrepiantes seja o da mãe de três crianças, quando ela explica por que, mesmo tendo acesso a alimentação em um abrigo, faz questão de comprar no supermercado ingredientes para preparar ovos, bacon e canjica a pedido dos filhos. As falas são intercaladas por imagens que contrastam conforto doméstico e a construção de arranha-céus com a falta de moradia: avenidas e parques tomados por barracas, acampamentos às margens de rios e ferrovias, automóveis transformados em casas. São cenas que, em que pese a familiaridade do espectador com o assunto, nunca deveriam deixar de impressionar. Não podemos, jamais, deixar de nos sensibilizar com a questão dos sem-teto.