Sempre vai ter gente morando na rua. Alguém dirá que estou sendo insensível, que devemos lutar para que ninguém se submeta a tamanha indignidade, mas é justamente o contrário.
A figura do andarilho atravessa toda a história da humanidade. Não é fruto da sociedade moderna nem do capitalismo, é um modo de vida que há milhares de anos se faz presente entre nós. Ser sensível, portanto, é aceitar que qualquer cidade, em menor ou maior grau, precisa saber conviver com essas pessoas.
– Muitas delas estão lá porque querem. Elas vivenciaram situações que as empurraram para a rua e, ao longo do tempo, foram incorporando uma maneira de viver, um jeito de pensar, um conjunto de valores que só pode mudar a partir de um processo muito lento – disse à coluna o sociólogo Ivaldo Gehlen, que há 20 anos estuda populações de rua.
Quer dizer: não vai adiantar, de uma hora para a outra, dar um apartamento para um pedinte, porque a transformação será profunda demais – uma casa envolve relação com vizinhos, regras de condomínio, pagamento de contas, compromissos tributários. É possível, sim, reduzir a população de rua com políticas de médio e longo prazo, mas nem os países mais ricos do mundo chegaram perto de eliminá-la. Porque sempre haverá quem queira viver assim.
Em Porto Alegre, faz mais de década que a prefeitura repete a mesma ladainha: "Não podemos estimular ninguém a continuar na rua". E aí transformam a vida do sem-teto num verdadeiro inferno. Destroem suas barracas, atiram os pertences no lixo, botam estacas embaixo de marquises, fecham banheiros à noite, gradeiam escadarias, tudo para que eles desistam desse cotidiano errante e repensem a própria existência.
É um terrorismo urbano que nunca funcionou: a população de rua cresce sem parar. Não estou defendendo que os moradores de rua tomem conta de tudo, que transformem o viaduto da Borges num cortiço, que construam vilas de papelão nas calçadas, que durmam na porta de qualquer prédio. Mas, se a ideia é fazê-los respeitar algumas regras, o poder público precisa ouvir deles que regras seriam aceitas.
Ao se aproximar de uma rotina mais digna, as pessoas aos poucos vão percebendo o quanto a vida poderia ser melhor.
O sociólogo Ivaldo Gehlen lembra, por exemplo, que algumas cidades experimentaram pequenas aldeias em terrenos públicos de baixa utilização – são espaços com banheiro, cozinha comunitária e alguma estrutura mínima. Nas regiões mais centrais, por que não oferecer pias para higienizar as mãos? Ou um local para tomar banho? Ou tanques para lavar roupa?
Ao se aproximar de uma rotina mais digna, ao se sentir à vontade para pegar um ônibus, ao vestir roupas limpas para buscar um emprego, as pessoas aos poucos vão percebendo o quanto a vida poderia ser melhor – esse é o caminho lógico para que alguém queira, no futuro, realmente deixar as ruas. Não faz sentido esperar que eu aceite ajuda de uma sociedade que me trata como lixo, e não como parte dela.