Na manhã da tragédia em Gramado, a chuva intensa atrasou dona Mara. Gerente de uma loja no epicentro do acidente, ela esperou o aguaceiro passar para sair de casa e, quando saiu, não havia mais loja para abrir: o avião já tinha desabado sobre a butique. Lá dentro, o funcionário que deveria ter chegado também não estava. Havia perdido o horário porque dormiu demais.
Do ponto de vista racional, reviravoltas assim têm explicação matemática. Imprevistos, pequenos atrasos e decisões banais certamente alteram, todos os dias, circunstâncias das quais nem lembramos depois. Um semáforo vermelho que faz você chegar um minuto mais tarde, por exemplo, pode garantir o encontro com um colega que vai sugerir o restaurante do almoço. A troca de caminho por uma rua mais vazia talvez termine em uma feira que entrará na sua rotina.
Mas, quando o entrelaçar de coincidências preserva uma vida, chamar isso de acaso parece meio frio. Não pode um desfecho tão extraordinário brotar de um enredo tão ordinário. Há quem diga, portanto, que "foi Deus" quem salvou dona Mara — uma possibilidade que merece ser considerada. Afinal, se uma pessoa realmente sente a presença de Deus, em qualquer momento que seja, quem sou eu para contestá-la? Talvez Ele exista, sim, justamente porque há quem o sinta.
Minha dúvida é por que Deus salvaria alguns e não outros. Morreram 10 naquela manhã em Gramado. O que torna uma pessoa tão especial a ponto de merecer uma intervenção divina negada à maioria? A resposta mais frequente costuma ser:
— Não era a hora dela.
Aí entramos em uma terceira suposição. Além da mão de Deus e das coincidências da vida, outra hipótese seria a vontade do destino — esse conceito nebuloso que combina acaso e divindade. Se foi isso, significa que todos estamos presos a uma trama inevitável, em que cada instante, cada atraso ou desvio, desempenha um papel em um roteiro previamente escrito.
Entre as três possibilidades, essa última é a que menos me agrada. Encarar cada escolha da vida como ilusão seria aceitar a liberdade como uma farsa — o que faria da própria vida uma enorme mentira. Para mim, é o contrário: com o ano novo chegando, o mais importante talvez seja lembrar que, por acaso, por Deus ou pelo destino, ainda estamos aqui. E é nas decisões que tomamos agora que reside a chance de escrever um futuro digno do presente que é estar vivo.