Imagine um mundo onde todos acham que todo mundo é pilantra. Nada é confiável: o leite da merenda, o padre que celebra a missa, o médico do Samu, o tribunal que julga um corrupto, o policial que patrulha o bairro. Quando tudo é visto com desconfiança e suspeita, sobra o quê? Apenas a regra cínica que rege o caos: não seja pego. Afinal, se a comunidade inteira é malandra, o que me impede de não ser também?
Isso é o que ocorre quando perdemos a coesão social. É ela que nos mantém unidos como sociedade — quanto mais coesão social, maior é o grau de conexão, de senso de pertencimento entre os membros de um grupo. Porque, para conviver em grupo, é necessário compartilhar alguns valores, algumas regras, alguns acordos inegociáveis. Quem infringir esses acordos, claro, precisa ser punido. Mas e quando a punição nunca vem?
Pegue o caso do empresário Sérgio Alberto Seewald, apelidado de Alquimista, preso nesta semana por adulterar leite com soda cáustica e água oxigenada. Seewald é investigado há duas décadas pelo Ministério Público. Chegou a ser inocentado em 2005, ou seja, ganhou carta branca para seguir com sua magia, até que sofreu um novo processo em 2014 e, desde lá, nunca foi julgado. Agora, seu leite intoxicado foi parar até em escolas de São Paulo.
Se o empresário que envenena a merenda não é punido, por que eu devo seguir as regras? Se o tribunal demora décadas para julgar um caso tão flagrante, o que me impede de driblar a lei? Se até os dois maiores ídolos da política nacional são associados à corrupção, como vamos levar a honestidade a sério?
É assim que a coesão social vai se perdendo, quando nenhuma instituição, autoridade ou serviço parece me acolher. Entra em cena o cada um por si, a desconfiança do vizinho, o furo na fila, a sonegação, o documento falso, o jeitinho no trânsito. Mas temos de resistir. Eu olho para o lado e consigo ver, na minha família, nos amigos e no trabalho, gente que insiste em fazer o certo, mesmo diante de tantas falhas.
É dessas pessoas que vem a força para exigir rigor, agilidade e transparência de quem deve nos servir. Porque fazer o certo sozinho é importante, mas não basta: é preciso transformar essa ética individual em cobrança coletiva. Cada vez que aceitamos o erro como norma, perpetuamos o ciclo que queremos romper. No fim, as instituições também são reflexo do que a gente escolhe tolerar.