Poucos dias após conquistar o Oscar de melhor filme internacional, Drive my Car (Doraibu mai Kâ) chega ao streaming — estreou nesta sexta-feira (1º) na plataforma MUBI (em Porto Alegre, segue em cartaz nos cinemas Cine Grand Café, Espaço Bourbon Country e GNC Moinhos).
Seu diretor, Ryûsuke Hamaguchi, virou um dos nomes mais celebrados do cinema mundial em um intervalo de um ano.
No dia 5 de março de 2021, ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim por Roda do Destino (disponível para aluguel, por R$ 12,90, na plataforma Belas Artes à La Carte). Em 17 de julho, ele e Takamasa Oe levaram o prêmio de roteiro no Festival de Cannes, agora por Drive my Car, também laureado pela Fipresci, a federação internacional de críticos. Em 9 de janeiro de 2022, esse mesmo título faturou o Globo de Ouro de longa em língua estrangeira. Em 7 de fevereiro, recebeu quatro indicações ao Oscar: melhor filme (foi o primeiro representante do país asiático ne briga pelo principal troféu), direção, roteiro adaptado — a partir de contos do escritor japonês Haruki Murakami, também autor da história que deu origem ao ótimo título sul-coreano Em Chamas (2018) — e longa internacional. Em 13 de março, Drive my Car venceu o Bafta, da Academia Britânica, para produções não faladas em inglês, e foi agraciado pela imprensa estadunidense e canadense em rádio, TV e internet com o Critics' Choice Awards da categoria. Em 27 de março, veio o Oscar, o segundo do Japão na competição oficial da categoria, depois de A Partida (2008), de Yojiro Takita. O país tem três estatuetas honorárias — por Rashômon (em 1952), de Akira Kurosawa; Portal do Inferno (Jikokumon, em 1955), de Kinugasa Teinosuke; e Samurai (Miyamoto Musashi, em 1956), de Hiroshi Inagaki.
Hamaguchi, 43 anos, não tem pressa para contar suas histórias. Já fez um filme de quatro horas e 15 minutos (Shinmitsusa, ou Intimacies, de 2012) e outro de cinco horas e 17 minutos (Happy Hour, 2015). Drive my Car tem três horas de duração (2h59min, para ser exato), mas é tão imersivo que poderíamos passar mais tempo junto aos personagens, ouvindo seus longos diálogos sobre paixões, segredos e arrependimentos. Aliás, é tão intimista que realmente nos sentimos muito próximos dos personagens. Eis um filme que fica — na cabeça e no coração, ambos tentando acomodar reflexões e emoções despertadas pela história que trata de temas eternos e universais: o amor, o sexo, a morte, o luto, a inveja, a culpa, o próprio papel da arte.
O protagonista é Yûsuke Kafuku (interpretado por Hidetoshi Nishijima), um ator e diretor de teatro casado com uma roteirista, Oto (Reika Kirishima). Na cena de abertura, os dois transam, e depois do orgasmo o casal põe em prática um ritual: Oto narra tramas que são memorizadas por Yûsuke; pela manhã, ele repete a trama para que ela possa trabalhar em seus roteiros. O sexo como força criativa, o sexo como comunhão.
A vida do ator e diretor será abalada por uma série de episódios, todos relacionados a perdas e a traumas (deixo para o espectador descobri-los, embora muitas críticas e até a sinopse avancem em revelações). Não por acaso, os cenários principais são Hiroshima, cidade arrasada pela bomba atômica em 6 de agosto de 1945, e a ilha de Hokkaido, que convive com vulcões ativos e terremotos.
Yûsuke não sabe lidar com sua bagagem emocional. Seu diagnóstico de glaucoma, por exemplo, parece uma manifestação psicossomática decorrente de algo que ele não deveria ou não gostaria de ter visto.
Dois anos depois dos acontecimentos do prólogo, Yûsuke viaja a Hiroshima para dirigir uma montagem multilíngue da peça Tio Vânia (1897), do russo Anton Tchékhov. Por causa das regras do festival de teatro, lá o protagonista não poderá pilotar seu amado e bem cuidado carro, um Saab vermelho com 15 anos de uso e no qual escuta fitas cassete com falas dos espetáculos.
Há um constante diálogo intertextual com Tio Vânia (Yûsuke rejeita interpretar o personagem principal, por enxergar nele um espelho de sua infelicidade), mas não só isso: em Drive my Car, o palco é o lugar onde podemos nos realizar, onde vêm à tona, por meio da arte, aquilo que reprimimos na vida cotidiana, onde são vencidas as barreiras — inclusive as linguísticas — e finalmente nos dispomos à conexão uns com os outros.
O carro também é um palco em que Yûsuke contracena com Misaki (Tôko Miura), a motorista contratada pelo festival. A dor e a culpa são denominadores comuns: ambos têm dificuldade de olhar pelo retrovisor.
Nas ruas e nas estradas de Hiroshima e de Hokkaido, dois lugares marcados pela morte e pela destruição, mas também pela resiliência e pela reconstrução, Yûsuke e Misaki vão, pouco a pouco, revelando os buracos de suas almas e encurtando a distância. No caminho, surgem as curvas dramáticas desenhadas por Ryûsuke Hamaguchi — como a que envolve o jovem ator Takatsuki (Masaki Okada) —, sinuosas, mas nunca bruscas, e sempre em direção a algum tipo de cura.
Yûsuke senta-se no banco traseiro, afetivamente afastado e inerte — dirija meu carro, guie minha vida, parece sugerir (apesar de apontar os destinos). Muito cedo Misaki teve de assumir a solitária e silenciosa condução de sua trajetória — a cena em que descreve como aprendeu a ser uma boa motorista é ao mesmo tempo terna e devastadora, triste e bela.