Do primeiro ao último prêmio, a 94ª edição do Oscar foi pautada pela inclusão e pela diversidade. Na verdade, antes mesmo de consagrar o drama sobre uma família de surdos No Ritmo do Coração (CODA) com o troféu de melhor filme — o primeiro conquistado por uma produção bancada por plataforma de streaming, a Apple TV+ —, neste domingo (27), a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood já havia sinalizado essa intenção. Ao retomar a tradição de apresentadores de cerimônia, após quatro anos de ausência, a entidade colocou o comando da festa realizada no Dolby Theatre, em Los Angeles, nas mãos de três mulheres, sendo duas delas negras: as atrizes e produtoras Regina Hall e Wanda Sykes (a comediante e roteirista Amy Schumer completou o trio).
A premiação em si começou ratificando o favoritismo de Ariana DeBose, de Amor, Sublime Amor, como atriz coadjuvante. Ela já havia vencido no Globo de Ouro, no Bafta (da Academia Britânica), no SAG Awards (do Sindicato dos Atores dos EUA) e no Critic's Choice (dos críticos estadunidenses e canadenses de rádio, TV e internet). No papel de Anita, ela brilha tanto nas cenas musicais quanto nos momentos mais dramáticos. É o segundo Oscar para a personagem com artistas diferentes, a exemplo do que aconteceu com Vito Corleone e Coringa — Rita Moreno conquistou a categoria pela primeira versão cinematográfica do musical da Broadway, de 1961. Filha de um imigrante de Porto Rico e com ancestrais afro-americanos, DeBose valorizou a representatividade em seu discurso de agradecimento. Primeiro, citou Rita Moreno (presente no atual Amor, Sublime Amor), que era a única atriz porto-riquenha no elenco principal da adaptação anterior:
— A sua Anita abriu caminho para milhares de Anitas como eu.
Depois, DeBose, 31 anos, falou de si mesma, descrevendo-se como uma "openly queer woman of color, uma afro-latina que encontrou sua força na vida através da arte":
— Para qualquer um que já questionou sua identidade ou para você que se encontra vivendo em espaços cinzentos... Eu prometo a vocês: há de fato um lugar para nós.
As duas categorias dedicadas a coadjuvantes resumem bem a diversidade da cerimônia (na qual pode-se incluir o longa de animação laureado, Encanto, ambientado na Colômbia). Ariana DeBose teve sua vitória anunciada por Daniel Kaluuya e a cantora H.E.R., ambos negros e premiados no ano passado por Judas e o Messias Negro. Coube à sul-coreana Youn Yuh-jung, oscarizada por Minari (2020), entregar o troféu de ator coadjuvante a Troy Kotsur. Surdo como seu personagem em No Ritmo do Coração, Kotsur, 53 anos, nunca teve muitas oportunidades desde o início da carreira, em 2001. O papel do pai com um senso de humor peculiar, às vezes turrão e em outras terno, há de ser um divisor de águas. Depois de conquistar o Gotham, o SAG Awards, o Bafta e o Critic's Choice, tornou-se o primeiro ator surdo a erguer o Oscar — Marlee Matlin, que faz sua esposa em No Ritmo do Coração, ganhou como melhor atriz por Filhos do Silêncio (1986).
Kotsur subiu ao palco usando sua tradicional boina. Em linguagem de sinais, emocionou a todos ao misturar revelações de bastidores, lembranças pessoais e ativismo social:
— Eu nem acredito que estou aqui. Muito obrigado. Tem sido uma jornada incrível. Visitamos a Casa Branca, eu queria ensinar alguns palavrões em linguagem de sinais para o (presidente) Joe Biden, mas a Marlee Matlin mandou me comportar. Então não se preocupe, Marlee, não vou soltar nenhuma bomba no meu discurso hoje. Em vez disso, quero agradecer a todos os maravilhosos palcos de teatro surdo onde me foi permitido e dado a oportunidade de desenvolver meu ofício como ator. (...) Meu pai era o melhor cantor da nossa família. Mas ele sofreu um acidente de carro e ficou paralisado do pescoço para baixo. E ele não conseguia mais cantar. Pai, aprendi tanto com você, que sempre vou te amar. Você é meu herói. (...) Dedico o prêmio à comunidade surda, à comunidade CODA e à comunidade com deficiência. Este é o nosso momento.
Mas o Oscar da inclusão também foi o Oscar da exclusão. A Academia de Hollywood rebaixou oito categorias, retirando-as da premiação ao vivo. Entre elas, a de edição, técnica sem a qual o cinema praticamente não existiria. Alvo de críticas de cineastas e atores, a decisão de abrir mão do princípio de igualdade atendeu a interesses comerciais da rede de TV estadunidense ABC, que vem amargando quedas na audiência do evento. Daí que em 2022 o Oscar inventou um prêmio extraoficial, o de "favorito dos fãs", decidido via Twitter, e incluiu no rol de apresentadores nomes que até podem ser populares, mas não têm nada a ver com cinema: o surfista Kelly Slater, o skatista Tony Hawk e o snowboarder Shaun White. O pior é que, além de puxar para uma hora mais cedo essas oito categorias — completam a lista design de produção, cabelos e maquiagem, música original, som, documentário em curta-metragem, curta de animação e curta de ficção —, a Academia revelou todos os seus vencedores antes da cerimônia oficial, e de roldão. Ou seja: sem pompa nem circunstância.
Mas enfim: depois dos latinos e dos surdos, foi a vez de o Oscar destacar personagens negros. Na categoria de melhor ator, Will Smith — que protagonizou o momento mais tenso da festa, o tapa dado em Chris Rock após uma piada de mau gosto sobre sua esposa, Jada Pinkett-Smith — confirmou o que havia sido prenunciado no Globo de Ouro, no Bafta, no SAG Awards e no Critic's Choice. O curioso é que o protagonista de King Richard: Criando Campeãs remete às duas indicações anteriores de Smith. Richard Williams é uma figura real como Muhammad Ali e Chris Gardner. A exemplo do boxeador de Ali (2001), faz do esporte uma arena para o combate ao racismo. A exemplo do pai desempregado de À Procura da Felicidade (2006), não mede esforços para que as filhas (as tenistas Venus e Serena Williams) tenham um futuro radiante. Com figurino (calções curtos e meias esportivas levantadas até o joelho) e sotaque singulares, o personagem permite ao ator de 53 anos exercitar qualidades que estavam adormecidas. Os traços psicológicos contribuem: Richard é obsessivo, teimoso e rigoroso. Smith tornou-se o quinto ator negro a vencer a categoria em quase 100 anos de premiação.
O documentário eleito, Summer of Soul (...ou Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada), resgata um evento que havia sido apagado da memória "oficial". É o Harlem Cultural Festival, que, por seis finais de semana seguidos, em 1969, reuniu em um parque de Nova York grandes nomes da música negra: Stevie Wonder, Nina Simone, B.B. King, Sly & the Family Stone, Gladys Knight & The Pips, The 5th Dimension... O filme dirigido pelo produtor musical, DJ e jornalista Ahmir "Questlove" Thompson intercala os shows com depoimentos de artistas e de espectadores. Há uma narrativa brilhante que vai dando conta do contexto social, político e cultural, da luta contra o racismo, do papel do gospel ("Nós não vamos ao psiquiatra, nós vamos à igreja", diz um dos entrevistados) e da valorização das origens africanas.
Na mesma linha de Summer of Soul, o curta documental The Queen of Basketball, de Ben Produftoot, trata de recuperar o esquecido legado de Lucy Harris (1955-2022). Considerada a maior jogadora de basquete dos EUA na década de 1970, foi a primeira jogadora a marcar pontos em uma Olimpíada (a de 1976, quando recebeu a medalha de prata) e a primeira e única mulher a ser recrutada para atuar na NBA — isso mesmo, junto aos homens (mas não chegou a jogar).
Por falar em trabalhar em um universo masculino, a categoria de melhor direção premiou pelo segundo ano consecutivo uma mulher: Jane Campion, de Ataque dos Cães. Mas foi apenas a terceira vez em 94 edições (vou repetir: terceira vez em 94 edições) que uma mulher recebeu o troféu — as anteriores foram Kathryn Bigelow, em 2010, por Guerra ao Terror (2008), e Chloé Zhao, em 2021, por Nomadland (2020). A cineasta neozelandesa de 67 anos já tinha uma estatueta dourada, a de roteiro original por O Piano (1993). No total, até hoje houve somente oito indicações para diretoras: Lina Wertmüller, por Pasqualino Sete Belezas (1975), Campion, por O Piano e agora por Ataque dos Cães, Sofia Coppola, por Encontros e Desencontros (2003), Bigelow, por Guerra ao Terror, Greta Gerwig, por Lady Bird: A Hora de Voar (2017), Chloé Zhao, por Nomadland, e Emerald Fennell, por Bela Vingança (2020).
Coprodutora de seu faroeste tardio sobre desejos reprimidos e masculinidade tóxica, Jane Campion não voltaria ao palco para o último prêmio da noite, mas outro título dirigido por uma mulher acabou conquistando o Oscar de melhor filme. Assinado por Siân Heder, No Ritmo do Coração cresceu na reta final das premiações e derrubou Ataque dos Cães, que era o campeão de indicações — 12 — e havia vencido o Globo de Ouro de melhor filme dramático, o Critic's Choice e o Bafta. Seu favoritismo sofrera um abalo significativo uma semana antes do Oscar, no dia 19, quando No Ritmo do Coração conquistou o PGA Awards, da Associação dos Produtores dos EUA. Em 22 das 32 edições anteriores (69%), houve coincidência entre o ganhador do PGA e o do Oscar. Muitos dos eleitores dessa premiação também são membros da Academia de Hollywood, assim como votam no Oscar integrantes do Sindicato dos Atores dos EUA, que deram a No Ritmo do Coração o principal troféu do SAG Awards, o de melhor elenco, e não laurearam ninguém de Ataque dos Cães, e do Sindicato dos Roteiristas, que o premiaram na categoria de roteiro adaptado, em um duelo direto com Ataque dos Cães (no Dolby Theatre, Heder repetiu o triunfo sobre Campion).
CODA, o título original, é a sigla de Child of Deaf Adults, filho de pais surdos. O filme é a versão do francês A Família Bélier (2014) e conta a história de uma adolescente, Ruby (papel de Emilia Jones), que é a única ouvinte e falante em uma família de surdos, com a qual entra em conflito ao buscar o sonho de se tornar cantora. A diretora e o elenco conseguem dosar comédia e drama, a ponto de, por vezes, não sabermos se estamos chorando de tristeza ou de alegria. Ou até das duas coisas ao mesmo tempo, vide algumas cenas entre Ruby e seu pai.
A votação do Oscar foi realizada entre os dias 17 e 22 de março. Não duvido que o contexto da guerra na Ucrânia — a invasão do país pela Rússia completou um mês na quinta-feira (24) — tenha influenciado o espírito do eleitorado. Aliás, houve um minuto de silêncio pelas vítimas do conflito, e o cineasta Francis Ford Coppola, homenageado pelos 50 anos do clássico O Poderoso Chefão, expressou solidariedade aos ucranianos. Em detrimento de Ataque dos Cães, uma obra com mais qualidade e ressonância, mas também amarga e árida, a Academia optou por um filme solar e otimista, com uma mensagem clara sobre representatividade (os personagens surdos são interpretados por atores surdos), empatia e inclusão.
Todos os vencedores
- Melhor filme: No Ritmo do Coração
- Direção: Jane Campion (Ataque dos Cães)
- Atriz: Jessica Chastain (Os Olhos de Tammy Faye)
- Ator: Will Smith (King Richard: Criando Campeãs)
- Atriz coadjuvante: Ariana DeBose (Amor, Sublime Amor)
- Ator coadjuvante: Troy Kotsur (No Ritmo do Coração)
- Roteiro original: Kenneth Branagh (Belfast)
- Roteiro adaptado: Siân Heder (No Ritmo do Coração)
- Fotografia: Greig Fraser (Duna)
- Edição: Joe Walker (Duna)
- Design de produção: Patrice Vermette e Zsuzsanna Sipos (Duna)
- Figurinos: Jenny Bevan (Cruella)
- Maquiagem e cabelos: Stephanie Ingram, Linda Dowds e Justin Raleigh (Os Olhos de Tammy Faye)
- Som: Mac Ruth, Mark A. Mangini, Theo Green, Doug Hemphill e Ron Bartlett (Duna)
- Música original: Hans Zimmer (Duna)
- Canção original: No Time to Die, de 007: Sem Tempo Para Morrer, por Billie Eilish
- Efeitos visuais: Paul Lambert, Tristan Myles, Brian Connor e Gerd Nefzer (Duna)
- Filme internacional: Drive My Car (Japão), de Ryûsuke Hamaguchi
- Documentário: Summer of Soul (... ou Quando a Revolução Não Pode Ser Televisionada), de Ahmir "Questlove" Thompson
- Longa de animação: Encanto, de Jared Bush, Byron Howard e Charise Castro Smith
- Documentário em curta-metragem: The Queen of Basketball, de Ben Proudfoot
- Curta de animação: The Windshield Wiper, de Alberto Mielgo
- Curta de ficção: The Long Goodbye, de Aneil Karia