O conflito na Ucrânia, que completa um mês nesta quinta-feira (24), alçou do anonimato líderes até pouco tempo irrelevantes no cenário internacional, escancarou a autocracia de Vladimir Putin e já alterou o equilíbrio do sistema de segurança da Europa. A coluna reuniu 10 pontos que mostram como o conflito sinaliza alterações profundas na geopolítica do século 21.
Zelensky, o comunicador
Pouco conhecido fora das fronteiras da Ucrânia até o início da guerra, Volodimir Zelensky, eleito em 2019, foi alçado a posição de líder internacional graças a seu magnetismo, coragem e habilidade de oratória a cada aparição.
Antes de entrar para a política, ele foi comediante, ator e roteirista, tendo estrelado comédias românticas e vivido o papel de um professor de Ensino Médio que se torna presidente em uma série chamada “Servo do Povo”, que satiriza a política ucraniana. A comunicação, como se sabe, é arma importante na guerra, e Zelensky, que tem aproveitado cada espaço internacional que lhe é ofertado, aproveita muito bem essa ferramenta para conquistar os corações e mentes do Ocidente.
Putin, o autocrata
Proclamado inimigo público número 1 no Ocidente, Vladimir Putin, ao contrário de Zelensky, já perdeu a guerra da opinião pública, independentemente do resultado final do front. O ex-agente da KGB e do FSB (sucessor do serviço de inteligência soviético) mentiu ao dizer que não invadiria a Ucrânia, quando, desde novembro, mobilizava tropas ao redor do país. Também ultrapassou a maioria das linhas vermelhas, bombardeando infraestruturas civis, como teatros, galerias de arte, hospitais e maternidades, e obstruindo os corredores humanitários. Putin ainda expandiu o conflito para além da região do Donbass (onde estão as repúblicas de maioria russa étnica) e provocou a Otan ao atacar uma base a 25 quilômetros da fronteira polonesa. No campo doméstico, mantém a mão pesada contra a oposição e criou um teatro para encenar o que chama de “operação militar especial”, proibindo que a imprensa use o termo guerra para definir o que ocorre na Ucrânia. O único limite ainda não ultrapassado é o uso de armas de destruição em massa. Até onde irá é incógnita.
Impasse em dois campos
Após 30 dias, a guerra chega a impasses nos campos de batalha e da diplomacia. No front, várias cidades ucranianas, como a capital, Kiev, Mariupol e Kharkiv estão cercadas e sob bombardeios. Mas as tropas russas não conseguem ingressar nas áreas urbanas graças à resistência ucraniana, maior do que Putin esperava.
Os russos sofrem com desabastecimento de cadeias de suprimento, e o moral está baixo em razão do prolongamento não esperado do conflito. No campo diplomático, a Ucrânia abre mão de entrar na Otan (motivo alegado por Putin para a invasão), mas quer “garantias de segurança” por parte do Ocidente. Também tem dito que questões como reconhecimento da Crimeia, anexada em 2014, e a entrega dos territórios separatistas do Donbass precisam passar por referendo interno. Há avanços no diálogo, mas muito lentamente.
Ameaça nuclear e Terceira Guerra Mundial
O risco de um confronto direto entre Otan e Rússia existe e trouxe de volta, nesses 30 dias, o fantasma de uma Terceira Guerra Mundial. Nas últimas semanas, o recrudescimento do conflito fez aumentar o temor de que os combates se tornem ainda mais destrutivos, com o uso de armas nucleares. Por enquanto, as ameaças fazem parte apenas da guerra retórica para exibir poderio bélico diante da recusa da Ucrânia em aceitar cessar-fogo. Além disso, ao fazer uso da ameaça nuclear, a Rússia tenta mostrar que não está fragilizada. Na terça-feira, o Kremlin condicionou o uso de armas nucleares ao que chamou de “ameaça existencial” ao país – leia-se a expansão da Otan para países do seu entorno estratégico (Ucrânia e Belarus).
Invisibilização de outras crises
O conflito na Ucrânia fez desaparecer das preocupações mundiais outras crises importantes, como a pandemia (uma subvariante surgiu, a China voltou a confinar parte de sua população e a Alemanha bateu novo recorde de infecções). Conflitos também foram esquecidos, como o Iêmen. A guerra civil já matou e mutilou em sete anos 10 mil crianças. Mas quando foi a última vez que você ouviu falar deste conflito?
O drama humano
O número de refugiados do conflito ucraniano passa de 3,5 milhões segundo da ONU - desses, cerca de 1 milhão são crianças. A rapidez do êxodo não tem precedentes na história recente. A resposta da Europa tem sido de solidariedade, bem diferente do tratamento dado pelo continente quando da chegada dos refugiados procedentes das guerras na África e do Oriente Médio, a partir de 2011. Com o prolongamento do conflito (muita gente se deslocou apenas internamente, esperando o fim dos combates para voltar para casa), esse número deve aumentar. Muitos dos que deixaram o país até agora têm familiares no Exterior, mas esse perfil já começa a mudar.
Fator digital e desinformação
O início da invasão russa à Ucrânia foi marcado por uma onda de desinformação espalhada no país atacado com vistas a provocar desinformação e atingir psicologicamente a população. O presidente dos EUA, Joe Biden, tem alertado para o risco de que a Rússia faça ataques cibernéticos e pediu que empresas privadas reforcem a segurança tecnológica. Se na guerra a primeira vítima costuma ser a verdade, no atual conflito a desinformação é acentuada pela dificuldade que jornalistas têm de checar in loco as informações. Tanto Rússia quanto Ucrânia exageram números para maximizar ganhos ou falseiam informações para tentar comover a opinião pública.
Segurança europeia e um papel para a Otan
O conflito desestabilizou o sistema de segurança europeu, mas, ao mesmo tempo, deu uma razão para a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) existir - após o fim da Guerra Fria, muitos acreditavam que a aliança não tinha mais razão de ser.
Ainda que se mantenha distante da guerra, a Otan está mobilizando forças de combate extras para quatro países de seu flanco Leste. Nesta quarta-feira (23), o secretário-geral da entidade, Jens Stoltenberg, anunciou o envio de grupos táticos adicionais que já estão na Estônia, Letônia, Lituânia e Polônia. Além disso, os membros devem aprovar apoio específico para outros parceiros que enfrentam o risco de pressão russa, incluindo Geórgia e Bósnia. A entidade também anunciou que irá fornecer à Ucrânia equipamentos de defesa contra armas químicas, biológicas e nucleares.
Ódio entre “primos”
Embora, a identidade ucraniana tenha sido destroçada e reprimida pelo Império Russo e, depois, pela URSS, os povos desses dois países consideram-se irmãos de nascimento e primos distantes. Muitos ucranianos falam russo e ucraniano de forma intercambiável, embora haja muitas diferenças entre os dois idiomas. O conflito, que tem origens políticas, e a força desproporcional impressa por Putin fez com que muitos ucranianos hoje odeiem os russos.
Ímã de voluntários
Em um conflito visto muitas vezes como o combate entre David e Golias, a Ucrânia acabou atraindo milhares de voluntários que cerraram fileiras ao lado das tropas regulares e dos civis que defendem o país invadido.
Estima-se que mais de 20 mil estrangeiros tenham se alistado nas forças ucranianas – entre eles muitos brasileiros.
Há ex-combatentes do Iraque e do Afeganistão e muitos novatos. Há grande variedade de perfis entre os que buscam se alistar, e muitos têm pouca ou nenhuma experiência militar.