Com a Copa do Mundo na Rússia se aproximando, nada mais justo do que lançar um olhar sobre a produção de uma das mais vigorosas culturas artísticas do planeta. A equipe do Segundo Caderno selecionou um conjunto de 12 livros e 10 filmes para conhecer (ou revisitar) a rica herança cultural russa.
No campo da literatura, a Rússia foi o berço de alguns dos principais escritores do estilo realista, com seu olhar amplo e totalizante que pretendia abarcar não apenas um grande panorama ficcional, mas dizer algo sobre a Rússia enquanto sociedade.
A grande literatura russa do século 19 não se furtava a um debate que era o da própria sociedade russa: a arte europeia, transplantada para o território, tinha mesmo algo que o povo russo podia reconhecer como próprio ou era apenas a imposição de uma cultura estrangeira (muito influenciada pelas visões francesas e germânicas) que havia sobrepujado a cultura eslava original?
O debate opôs gênios do calibre de Ivan Turguêniev (1818 – 1883), para quem a Rússia deveria abraçar a forma do romance com entusiasmo – e que, não por acaso, era considerado por muitos de seus contemporâneos como um autor muito mais francês do que russo – e Liev Tolstói (1828 – 1910), para quem a grande literatura russa representava um decisivo "desvio das formas europeias".
A literatura russa é produzida por autores que tentam pensar a própria identidade de seu país, mas que, ao fazerem isso, vibram uma corda íntima universal capaz de arrebatar leitores de outras épocas e origens geográficas. São tramas universais sobre a própria aldeia (às vezes, literalmente) – para lembrar uma frase, formulada originlamente por Tolstói, que foi repetida a ponto de se tornar um clichê.
Livros breves
A lista de livros seguiu um projeto diverso, mais focado em apresentar a grandeza da literatura russa do que em esgotar seus grandes clássicos. A ideia foi apresentar títulos que poderiam ser bons cartões de apresentação para a obra de gigantes da literatura. Não é preciso começar Tolstói por Guerra e Paz ou Dostoiévski por Os Demônios, duas obras imprescindíveis, mas alentadas. Por isso, listamos novelas breves de ambos os autores, bem como textos de outros mestres.
A relação se amplia para abarcar nomes menos conhecidos do grande público e ainda avança até Viktor Pelevin, autor contemporâneo que se tornou o grande cronista ficcional da queda do regime soviético. Como nos filmes não havíamos indicado documentários, também se privilegiou nesta relação os textos ficcionais.
1 - O Capote e Outras Histórias (1842), de Nikolai Gógol
Série de contos em que, com uma prosa límpida e toques de realismo fantástico, Gógol satiriza dois dos principais aspectos da sociedade russa de seu tempo: o arcaísmo pesado da vida dos camponeses e a rígida etiqueta hierárquica da casta de funcionários burocráticos da corte czarista. No conto título, todo o drama do protagonista está em arranjar um novo capote, já que ele é alvo de desprezo mesmo dos colegas de repartição pelas condições precárias de seu casaco – uma preocupação que vai acompanhá-lo até mesmo depois da morte.
2 - Primeiro Amor (1860), de Ivan Turguêniev
Uma das novelas de formação mais clássicas da história da literatura. Neste breve texto de Turguêniev (mais conhecido pelo ambicioso Pais e Filhos), Vladimir Petróvitch é um rapaz sensível de 16 anos, superprotegido pela mãe e com um relacionamento distante com seu pai. Sua relação com o mundo vai ganhar novas cores e dramas ao se apaixonar pela vizinha Zinaida, uma jovem mais velha cercada de admiradores. O aprendizado da paixão é também o das armadilhas e enganos da vida adulta.
3 - Homens Interessantes e Outras Histórias (1873), de Nikolai Leskov
Escritor que foi apontado por Walter Benjamin como o modelo mais acabado de narrador russo, Leskov reúne aqui contos sobre personagens "interessantes" – que, na verdade, são homens comuns, mas que preservaram uma ligação mais próxima e vigorosa com a natureza. As narrativas de Leskov também buscam ressaltar as virtudes do sacrifício e da abnegação entre aqueles que têm pouco mas não se furtam a tentar salvar seus semelhantes.
4 - Uma Criatura Dócil (1876), de Fiódor Dostoiévski
Tiranizada pelas tias e desesperada para deixar a casa da família, uma jovem de 16 anos aceita casar-se com um quarentão hipocondríaco. O choque entre as aspirações de liberdade dessa mulher, que até ali aparentemente foi tão "dócil", e as ideias preconcebidas do marido, mais apegado às noções tradicionais do que se espera de uma esposa, serão o mote para um mergulho de Dostoiévski numa profunda trama psicológica de ciúmes e tragédia. Um bom ponto de partida para um autor que sabia dar voz às psiques mais torturadas.
5 – A Morte de Ivan Ilítch (1886), de Leon Tolstói
Uma novela dilacerante sobre a vacuidade da vida e talvez uma das melhores obras já escritas sobre doença e dor física em toda a história da literatura. Nesta breve história que nada fica a dever a seus monumentais panoramas épicos, Tolstói reconstitui a vida do magistrado Ivan Ilítch, um homem com uma vida burguesa aparentemente perfeita que vê seu mundo ruir rapidamente à medida que combate um câncer agressivo e percebe que suas ligações, sua família, mesmo sua posição burguesa respeitável não são nada diante do sofrimento e da morte.
6 - O Beijo e Outras Histórias (1887), de Anton Tchékhov
O mestre do conto na sua melhor forma. Uma compilação de seis textos mais longos do autor (que era conhecido também por narrativas curtas como vinhetas), entre os quais alguns frequentemente listados entre suas obras-primas, como o contundente Uma História Enfadonha, sobre um professor aposentado e sua visão desencantada do mundo, e Enfermaria Nº 6, desalentador quadro de um hospício de província.
7 - Os Sete Enforcados (1908), de Leonid Andreiev
Sete condenados à forca pelo sistema judiciário russo, já cientes da morte inapelável, enfrentam a ideia do fim enquanto aguardam a preparação da execução. Andreiev (1871 – 1919), um dos mais sombrios e menos conhecidos dos grandes prosadores clássicos do realismo russo, torna a angústia de seus personagens nesta breve novela um libelo contundente contra a pena de morte.
8 – O Exército de Cavalaria (1924), de Isaac Bábel
Reunião de 36 narrativas curtas, resultado de um período que o autor passou, como soldado raso e correspondente do jornal militar O Cavalariano Vermelho, junto às tropas da cavalaria russa durante a sangrenta guerra de fixação de fronteiras com a Polônia, entre 1920 e 1921. Narradas em primeira pessoa, quase todas do ponto de vista de Kiril Vassílievitch Liútov, jovem judeu agregado ao batalhão de cossacos e alter ego do próprio Bábel, montam um panorama dos efeitos do regime soviético junto à gente comum. Também foi publicado no Brasil com o título de A Cavalaria Vermelha.
9 - Nós (1924), de Evgueny Zamiátin
No cenário distópico deste romance ambientado no século 26, a individualidade foi abolida, os cidadãos são identificados por números e o sistema político é comandado por uma burocracia tecnicista. Nesse cenário, D-503, um matemático que trabalha na construção de uma espaçonave, desperta para o caráter totalitário da sociedade ao conhecer uma mulher irreverente e rebelde. O livro influenciaria Admirável Mundo Novo (1932), de Huxley, e 1984 (1949), de Orwell.
10 – A Estrada (anos 1930 e 1940), de Vassili Grossman
Bom cartão de apresentação para um dos maiores e mais obscuros escritores do século 20. Perseguido pelo stalinismo soviético, Vassili Grossman só foi redescoberto nos anos 1980.
Este livro reúne contos, ensaios e reportagens distribuídos em cinco seções, que abrangem desde ficções poderosas sobre dilemas da vida sob o regime soviético até cartas de despedida que escreveu para a mãe morta (fuzilada pelos nazistas em 1941, com outros 12 mil judeus, na Berdítchev natal).
11 – Piquenique na Estrada (1977), de Arkádi e Boris Strugátski
Um romance que comprova a rica tradição russa na ficção científica. Naves alienígenas visitaram a Terra, mas partiram sem fazer contato.
As zonas de pouso estão sob controle governamental estrito, mas logo surgem os "stalkers", especialistas em invadir os lugares em busca de artefatos alienígenas para vender no mercado negro. O livro inspirou uma obra-prima do cinema, Stalker (1979), de Andrei Tarkovsky.
12 - A Metralhadora de Argila (1996), de Viktor Pelevin
Viktor Pelevin se tornou o primeiro grande escritor russo a emergir após a queda do regime soviético. Este romance, considerado sua obra-prima, faz uma leitura delirante da experiência comunista no país apresentando Piotr Poustota, um personagem que é alternadamente um oficial do Exército Vermelho às vésperas da criação da União Soviética e um interno em um hospício russo nos anos 1990, no período pós-comunista. A narrativa borra as definições precisas sobre qual das duas personalidades do narrador é a verdadeira e qual é a imaginada, num comentário preciso sobre a dificuldade do povo russo de conciliar as experiências de seu passado recente.