Com a Copa do Mundo na Rússia se aproximando, nada mais justo do que lançar um olhar sobre a produção de uma das mais vigorosas culturas artísticas do planeta. A equipe do Segundo Caderno selecionou um conjunto de 12 livros e 10 filmes para conhecer (ou revisitar) a rica herança cultural russa.
Embora já houvesse diretores experimentando a novíssima tecnologia no período czarista, o salto artístico do cinema russo tem suas origens ligadas à Revolução de 1917 – que representou, a seu modo, um impulso de modernidade num país cuja matriz econômica e social ainda era camponesa.
Após o estabelecimento do regime soviético, os bolcheviques foram rápidos em perceber o valor do cinema como arte de propaganda e incentivaram a produção local – englobando não apenas russos, mas georgianos, armênios, lituanos e bielorrussos. É nesse período que entram em atividade nomes como Sergei Eisenstein (1898 – 1948) e Dziga Vertov (1896 – 1954), pioneiros no estabelecimento de técnicas que se tornaram parte da gramática do cinema como forma narrativa.
Filmes clássicos
Para a escolha dos filmes, optou-se por uma seleção que abrange clássicos de diversos períodos e que dão um apanhado da trajetória do cinema russo. Os títulos recomendados contemplam um século de obras-primas, como Solaris, até exemplares contemporâneos, como Anna Karenina: A História de Vronsky, de Karen Shakhnazarov, uma imaginária sequência do clássico Anna Karenina, de Tolstói, em que o filho da personagem procura, anos depois, o amante de sua mãe, o Conde Vronsky, para ouvir seu lado da história. O filme estreia em Porto Alegre na próxima semana.
1 – O Encouraçado Potemkin (1925), de Serguei Eisenstein
Ao encenar um episódio real ocorrido na Rússia em 1905 – a rebelião de marinheiros de um navio de guerra contra as condições subumanas de trabalho, duramente reprimida pelo governo czarista no porto de Odessa, na Ucrânia –, Eisenstein foi além da representação histórica. Realizou, ainda na era do cinema mudo, um documento de alta voltagem política e social. E, ao mesmo tempo, consagrou a revolucionária escola russa de montagem, que estabeleceu a gramática de informação, ritmo e sentido por fotograma ainda hoje exemplar na narrativa visual. A cena do carrrinho de bebê despencando da escadaria é uma das mais famosas da história do cinema.
2 – Um Homem com uma Câmera (1929), de Dziga Vertov
Vertov começou a trabalhar em 1918, ano da Revolução Russa que colocou Lenin no poder. Especializou-se no registro documental daquele novo período histórico que se iniciava, criando o conceito conhecido como kino-pravda (cinema-verdade) ou kino-glaz (cinema-olho). Com essa captação da realidade, o diretor estabeleceu uma linguagem visual inovadora, que atingiu seu ápice em Um Homem com uma Câmera. Trata-se um filme-ensaio que apresenta situações do cotidiano filmadas por seu câmera, Mikhail Kaufman, nas ruas de Moscou, Kiev, Odessa e Kharkiv, interligadas por inovadoras técnicas de montagem e sobreposição de imagens que lançam diferentes sentidos sobre a percepção do "real". Um dos filmes mais influentes de todos os tempos.
3 – Guerra e Paz (1965), de Sergei Bondarchuk
O monumento literário de Tolstói ganhou em sua própria casa a adaptação para o cinema que é considerada a mais digna de comparação com o original – Hollywood fez a sua em 1956, assinada por King Vidor, com Audrey Hepburn e Henry Fonda. O Guerra e Paz de Bondarchuk ganhou o Globo de Ouro e o Oscar de filme estrangeiro. A produção da estatal Mosfilm, o maior e mais antigo estúdio da Europa, foi anunciada à época como resultado de um fabuloso investimento de US$ 100 milhões, com 120 mil figurantes usados nas grandiosas encenações de batalhas das guerras napoleônicas. Mas o custo, segundo especialistas, não teria chegado a 10% do valor, e o próprio Bondarchuk disse posteriormente que usou "apenas" 12 mil figurantes.
4 – Solaris (1972), de Andrei Tarkovsky
Um dos gigantes do cinema soviético, o russo Tarkovsky poderia figurar aqui com outros de seus grandes e premiados filmes, entre ele Stalker (1972), obra-prima citada na lista de literatura pelo livro do qual foi adaptada (Piquenique na Estrada). Solaris foi recebido, no clima da Guerra Fria, como a resposta russa a 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Kubrick. De comum a esses dois grandes filmes, porém, apenas a profunda experiência sensorial que apresenta ao espectador. A jornada aqui é de um psiquiatra enviado a uma estação espacial na órbita do planeta Solaris, com o objetivo de investigar fenômenos relacionados a existência de uma vida extraterrestre inteligente. Na missão, a tripulação será afetada por interferências telecinéticas que embaralham realidade e delírio.
5 – Vá e Veja (1985), de Elem Klimov
Um dos mais potentes e comoventes filmes de guerra já feitos. A representação da violência e selvageria que marcaram os confrontos entre soviéticos e nazistas tem como personagem central um jovem camponês da Bielorrússia que, em 1943, junta-se a um grupo de milicianos que enfrentam os alemães. Em meio aos confrontos, o jovem se desgarra do grupo e passa a vagar sem rumo testemunhando horrores que a câmera de Klimov torna dolorosamente palpáveis.
6 – O Sol Enganador (1995), de Nikita Mikhalkov
Ganhador do Oscar de filme estrangeiro, aborda um período emblemático da história soviética, a onda de terror que Stalin lançou sobre opositores, reais e imaginários para consolidar seu poder ditatorial. A trama se passa em 1936, quando um militar consagrado como herói revolucionário recebe em sua casa de campo a visita de um velho amigo, com passado e intenções nebulosas.
7 – Arca Russa (2002), de Aleksandr Sokúrov
Filme histórico por uma peculiaridade inovadora: foi realizado em único plano-sequência, com 97 minutos sem corte algum – proeza, permitida pela então novidade do suporte digital. Sokúrov leva o espectador a uma imersão pela história da Rússia, percorrendo as salas do Museu Hermitage, em São Petersburgo, que guarda uma das mais preciosas coleções de arte do mundo. Passam pela tela personagens como Pedro, o Grande, Catarina II e a família de Nicolau II, o último czar. A engenhosa produção exigiu logística precisa para recriar cenas com até 3 mil figurantes em trajes de época.
8 – Minha Felicidade (2010), de Sergei Loznitsa
Painel histórico e comportamental da Rússia na jornada de um caminhoneiro que cruza com diferentes tipos após se perder numa estrada. As histórias narradas por esses personagens somam-se às experiências que o protagonista vai vivendo em um universo de violência e degradação, que espelha o desmoronamento moral e físico advindo do esfarelamento do império soviético.
9 – Leviatã (2015), de Andrei Zvyagintsev
A Rússia da era Putin é espelhada na jornada de um homem em confronto com "o sistema". O protagonista vive com a mulher e o filho num vilarejo à beira-mar. Ao se ver assediado de forma agressiva por um prefeito que deseja apropriar-se de seu terreno, busca a ajuda de um advogado. Leviatã provocou polêmica na Rússia, onde foi exibido com cortes, em razão de seus personagens com caráter dúbio e abordagem de temas como corrupção política e moral que germinam na degradação social e econômica.
10 – Anna Karenina: A História de Vronsky (2017), de Karen Shakhnazarov
A clássica personagem de Tolstói retorna ao cinema no filme que estreia no Brasil em 7 de junho. Esta versão coloca a história sob o ponto de vista do amante da aristocrata e acrescenta no enredo fatos posteriores, ambientados no começo do século 20, quando um jovem médico, filho do casal adúltero, confronta o pai sobre os trágicos episódios que envolveram sua mãe. Shakhnazarov rodou ao mesmo tempo, com o mesmo elenco, a adaptação fiel do livro, exibida como minissérie.