Presente no catálogo de Telecine, Apple TV e Google Play, Brinquedo Assassino (Child's Play, 2019) é o que os estadunidenses chamam de reboot, um reinício de franquia, mas que acabou solenemente descartado. Basta ver que a série Chucky, surgida em 2021 e disponível no Star+, retoma as características originais do boneco diabólico criado por Don Mancini que estrelou sete longas-metragens entre 1988 e 2017.
Que pena, pois, como nos melhores filmes de terror, o mais recente Chucky cinematográfico tinha algo a dizer sobre o mundo real.
O filme é dirigido pelo norueguês Lars Klevberg, o mesmo de Morte Instantânea (2019), e tem entre os produtores Seth Graeme-Smith e David Katzenberg, que também bancaram It: A Coisa (2017), a maior bilheteria da história no gênero (US$ 700 milhões).
O roteiro escrito por Tyler Burton Smith busca alguma singularidade em relação aos filmes anteriores. De cara, muda a origem do boneco, não mais o hospedeiro da alma do serial killer Charles Lee Ray. O sobrenatural deu lugar à tecnologia: Buddi é um brinquedo dotado de inteligência artificial que, apesar da aparência assustadora, faz um sucesso danado (só na ficção alguém o compraria). Ele é fabricado por uma multinacional dos Estados Unidos, a Kaslan, no Vietnã, onde programadores trabalham sob um regime de escravidão. Revoltado com a humilhação e os maus-tratos pelo gerente, um deles remove todas as travas de segurança do exemplar que estava montando — e é esse que, mais tarde, vai parar na casa de Andy, agora um adolescente, interpretado por Gabriel Bateman (o Jack Hawthorne do seriado American Gothic). O garoto recém se mudou para um subúrbio com a jovem mãe, Karen (Aubrey Plaza, a April da série Parks and Recreation e a Lenny Busker de Legião), empregada da loja de brinquedos Zed Mart, e é vizinho de um policial, Mike (Brian Tyree Henry, o Phastos de Eternos) — que parece ser o único da cidade.
Sentindo-se isolado, Andy encontra um ombro amigo no boneco que batiza de Chucky depois de tentar emplacar Han Solo — uma piadinha metalinguística com o ator que dubla o pequeno assassino, Mark Hamill, o Luke Skywalker da saga Star Wars. Na mesma linha, Klevberg propõe uma curiosa aproximação com E.T. (1982), o clássico de Steven Spielberg: há um pôster no quarto de Andy, que inclusive veste um casaco vermelho como o de Elliot, o dedo de Chucky acende como o do extraterrestre e o boneco também aprende sobre o mundo assistindo TV. Aprende, por exemplo, que nos divertimos com filmes de horror cruéis e sanguinolentos tipo O Massacre da Serra Elétrica (1974). Poderia soar como autocrítica — banalizamos, glorificamos e, por fim, inspiramos a violência —, mas Klevberg não se demora nisso, afinal, há crueldades a mostrar e sangue a jorrar. E como jorra! Este Brinquedo Assassino não tem a menor vergonha de esfaquear, escalpelar e esquartejar.
É quando esquece essa natureza gore que o filme tem seus melhores momentos, aqueles que remetem não às genéricas franquias de terror, mas aos episódios de Black Mirror. A Kaslan é uma espécie de Google, onipresente e onisciente em um modo de vida no qual nos tornamos dependentes dos dispositivos eletrônicos — no começo da história, Andy refere-se a seu celular como seu único passatempo. Uma personagem aparentemente inocente acaba pagando um preço alto pela vaidade que exibe ao fazer uso de um carro autônomo. Os perigos da conectividade são reportados seguidamente — imaginem um mundo em que seus desabafos íntimos fossem trazidos à tona para uma grande audiência. Pensem em como seria se máquinas utilizassem nossas lembranças como armadilhas contra nós mesmos, se brinquedos ou passatempos capturassem informações e preferências nossas. E se nossos passos digitais fossem todos vigiados, se nossas vontades estivessem todas mapeadas por uma inteligência artificial.
Ops: isso tudo já existe, né? Na era da internet das coisas e das redes sociais, estamos sempre na companhia de um Chucky.