Depois de circular por festivais internacionais ao longo dos últimos dois anos — foi lançado na Quinzena dos Realizadores, em Cannes —, o terror brasileiro Medusa (2021) estreia nesta quinta-feira (16) em três salas de Porto Alegre: CineBancários, Espaço Bourbon Country e Sala Norberto Lubisco. Na bagagem, traz prêmios como o de melhor filme latino-americano na mostra de San Sebastian e o de melhor direção (Anita Rocha da Silveira) no segmento Noves Visions de Sitges, um dos mais famosos certames do cinema fantástico, ambos realizados na Espanha, além de dois troféus conquistados em Trömso, na Noruega, e as estatuetas de melhor filme e de atriz coadjuvante (Lara Tremouroux) no Festival do Rio.
Trata-se do segundo longa-metragem dirigido pela carioca Anita, 38 anos, que vem trabalhando com o gênero desde seus curtas-metragens, como O Vampiro do Meio-Dia (2008) e Os Mortos-Vivos (2012), também exibido em Cannes. No primeiro, Mate-me Por Favor (2015, disponível na Netflix), ela contou a história de um grupo de adolescentes que depara com a violência, o desejo e o medo em seu cotidiano na escola e em meio aos condomínios da Barra da Tijuca. Em passeio entre as aulas, Bia (Valentina Herszage) e suas amigas Renata (Dora Freind), Michele (Julia Roliz) e Mariana (Mari Oliveira) encontram uma jovem agonizando em um terreno baldio, depois de ter sido estuprada e esfaqueada. O episódio impressiona especialmente Bia, que sente despertar em si uma morbidez aliada a uma pulsão sexual quase incontrolável.
Em Medusa, Anita segue lidando com personagens femininas, com sexualidade, com a iminência da morte e com a crítica social. E volta a escalar a atriz Mari Oliveira, agora alçada à condição de protagonista.
O ponto de partida, contou a diretora e roteirista em entrevistas, foi o sentimento de que a sociedade brasileira dos últimos anos assumiu uma visão retrógrada em relação ao papel da mulher. Voltou-se a defender o modelo da "bela, recatada e do lar" — título da revista Veja para o célebre e polêmico perfil, publicado em abril de 2016, da então "quase primeira-dama do país" (era a época do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff), Marcela Temer. Também serviram de inspiração notícias de jornais sobre ataques femininos contra jovens consideradas "promíscuas".
— Às vezes, o cabelo era cortado e cortes eram feitos na face, pois era essencial deixar essa mulher "feia". Os motivos declarados para tamanha violência variavam entre a vítima ser considerada "bonita demais", ter "dado em cima" do namorado de uma das agressoras, "se exibir" com roupas provocativas, ter likes de muitos rapazes em fotos no Instagram e ser tida como "fácil" e "piranha", tudo isso em um mundo onde as redes sociais se tornaram a principal ferramenta de vigilância — disse Anita.
A cineasta logo ligou os fatos ao mito grego que dá nome ao filme:
— Na versão mais conhecida, Medusa era uma das mais lindas donzelas existentes, sacerdotisa do templo de Atena. Mas um dia ela cedeu às investidas de Poseidon, enfurecendo Atena, a deusa virgem, que transformou seu belo cabelo em serpentes e deixou seu rosto tão horrível que uma mera visão transformaria os que a olhassem em pedra. Medusa foi punida por sua sexualidade, por desejar, por não ser "pura". Da junção entre mito e realidade me ocorreu que, mesmo com o passar dos séculos, faz parte da construção da nossa civilização as mulheres quererem controlar umas às outras. E que talvez essa seja uma forma de mantermos o controle de nós mesmas. Afinal, crescemos com medo de ceder aos nossos impulsos, e até de sermos consideradas "histéricas". O controle também passa pela aparência, pela beleza, pois está impregnada em nós a ideia de que este é o nosso principal atributo. Fazemos dietas para chegar ao peso "padrão" e passamos por procedimentos estéticos dolorosos na esperança de sermos jovens para sempre.
Medusa começa reproduzindo um desses ataques, em uma sequência que apresenta duas de suas virtudes: a direção de fotografia assinada por João Atala, o mesmo de Mate-me Por Favor, e a trilha sonora, que combina canções como Cities in Dust (da banda Siouxsie & The Banshees) e Uma Noite e 1/2 (de Renato Rocketh, na voz de Marina Lima) com músicas instrumentais de Bernardo Uzeda influenciadas pelo cineasta e compositor John Carpenter (do clássico do terror Halloween, referenciado também nas máscaras usadas pelas agressoras) e pelos grupos de rock progressivo Goblin (que trabalhava com o cineasta italiano Dario Argento) e Tangerine Dream (de filmes oitentistas como Chamas da Vingança e A Lenda).
Entre as mulheres que cometem as agressões, está a personagem de Mari Oliveira, a jovem enfermeira Mariana, que, ao lado de suas amigas, se esforça para não cair em tentação. Elas fazem parte de um grupo de música e dança (com figurinos e passos comportados, é claro) chamado de Preciosas do Altar. A líder é Michele, interpretada por Lara Tremouroux (das séries Onde Nascem os Fortes e Rota 66: A Polícia que Mata), que realmente rouba a cena.
Michele é uma estrela nos cultos evangélicos do pastor Guilherme (Thiago Fragoso), personagem que permite a Anita Rocha da Silveira abordar a relação entre política e religião no Brasil — ele busca se eleger deputado — e a ascensão das milícias de extrema-direita (ele comanda os Vigilantes de Sião). No palco, ela canta versos sobre mulheres "devotas e submissas ao Senhor". Em casa, faz vídeos nos quais ensina a posição certa para selfies, de modo que nem sejam carnais, nem aspirem o divino.
Quando uma das vítimas das blitze moralistas revida, machucando o rosto de Mariana, a protagonista se vê rejeitada e precisa lutar para se recolocar no ambiente social. Também passa a refletir sobre os ideais ultraconservadores, o radicalismo, a misoginia e a hipocrisia de seus pares, e a se interessar mais e mais pelo rumoroso caso de uma mulher desfigurada, Melissa (em participação especial de Bruna Linzmeyer).
Por causa dessa subtrama (que, no fundo, não acrescenta muito, acaba desviando o foco da história maais envolvente) e por causa de decisões estéticas de Anita (como alongar os planos para a construção de uma atmosfera de horror psicológico, o que inclui sequências de devaneio — ou não — de Mariana), Medusa é um tanto comprido: suas duas horas e sete minutos se fazem sentir.
Para diluir o peso de seu tempo e de seus temas, a cineasta lança mão de uma certa comicidade em meio a momentos de tensão e terror. Tanto na exposição da falsidade dos supostos santos quanto na criação de números musicais. Entre esses, destacam-se o da canção Jesus É meu Amor, versão das Preciosas do Altar para Sonho de Amor, sucesso da dupla Sullivan & Massadas gravado por Patrícia Marx em 1990, e as coreografias dos Vigilantes de Sião.