Três décadas após chegar às livrarias, vencer o Prêmio Jabuti e tornar-se quase uma leitura obrigatória para estudantes de Jornalismo de todo o país, o livro Rota 66 - A História da Polícia que Mata, de Caco Barcellos, vai virar série pelo Globoplay. A produção, que estreia dois de seus oito episódios nesta quinta-feira (22) — os demais serão disponibilizados semanalmente, às quintas, dois a dois —, recria a investigação feita pelo jornalista gaúcho acerca das ações violentas do grupo de elite da polícia paulistana, a Rota.
Caco, interpretado no seriado pelo ator Humberto Carrão, passou sete anos investigando os assassinatos cometidos pelo batalhão especial de São Paulo. Até descobrir que, na prática, ele funcionava como uma máquina de matar pessoas inocentes, majoritariamente pobres e moradoras da periferia. O objetivo inicial era investigar a morte de três adolescentes executados pela Rota no início dos anos 1980, conta o jornalista, mas a partir deste caso ele encontrou uma sistemática de ações criminosas cometidas pela força do Estado.
— Comecei a ficar muito assustado, porque fui criando um banco de dados onde, quando identificava alguém, perguntava para a Justiça se era criminoso ou não, e a Justiça me dizia que não. A Justiça me disse isso duas mil e duzentas vezes. Aí eu me dei conta de que o banco de dados apontava para uma situação muito mais grave — lembra Caco. — A maior dificuldade, sem dúvida, foi conviver com as histórias das pessoas que foram vítimas dessa violência.
São essas histórias que ditam o tom da adaptação do livro para o audiovisual. Apesar de se chamar Rota 66 - A Polícia que Mata, a série não é narrada a partir do olhar de quem puxa o gatilho, mas de quem tem sua vida ceifada. Também não é uma produção biográfica sobre Caco Barcellos, ainda que a figura do jornalista seja central, mas sobre as mortes que o trabalho dele fez vir a público. Para dar conta disso, a série faz uma sobreposição de narrativas.
Narra a investigação do jornalista, mostrando como foi sua atuação, quais foram suas dificuldades e pincelando ainda recortes de sua vida pessoal ao trazer, por exemplo, os desafios da criação do filho — aí, surgem personagens como a de Lara Tremouroux, que interpreta a companheira de Caco à época, Luli. Ao mesmo tempo, recria as histórias de alguns dos crimes que foram descobertos por Caco, mostrando como se deu a conduta ilegal da Rota, quem eram essas vítimas e quem são as pessoas que ficam após esses crimes, e precisam conviver com a dor de perder um familiar — é nesta camada narrativa que estão os personagens de Naruna Costa, que vive uma mulher cujo marido foi morto pela Rota, e de Ailton Graça, intérprete de um sargento que vê a violência policial atingir sua família.
— O público pode esperar um olhar para essa violência do Estado contra os trabalhadores de baixa renda, mas sob a perspectiva das vítimas. Há outras séries que mostram o olhar da polícia, as razões da polícia, que são contadas a partir do olhar de quem dispara o gatilho. No Rota, livro e série, o que importa é esse mergulho na vida de quem tem a sua família destruída por essas ações — adianta Caco Barcellos.
Humberto Carrão completa.
— A série presta uma homenagem a essa forma do Caco de fazer jornalismo, esse jornalismo de acompanhamento. Os episódios não encerram e começam histórias, os personagens ficam — diz, avaliando que a própria história de Caco Barcellos tem essa característica de continuidade. — O Caco acreditava que a contundência do material que ele levantou seria capaz de transformar aquela polícia de alguma forma, mas um mês depois aconteceu o massacre do Carandiru, com dois policiais que estão na lista dos maiores matadores comandando a ação. Isso diz muito sobre a história do Caco, sobre essa coisa de empurrar a pedra e a pedra rolar, de bater com a cara na parede, mas seguir.
O ator conta que sua maior dificuldade ao interpretar o jornalista foi o fato de a participação dele ser envolta por uma espécie de invisibilidade — pois, no livro, apesar de narrar os passos da investigação, Caco não foca em si, mas nos crimes e nas vítimas. E o mesmo acontece na série, o que tornou mais difícil a preparação para o papel.
— É interessante que o livro é do Caco, mas o Caco não é personagem do livro. Então, foi uma construção. A partir de pesquisa, de roteiro, dos dias que tive com o Caco, dias que foram muito intensos e muito importantes para mim — conta Humberto, celebrando o papel. — Fazer o que a gente faz, nesse Brasil de hoje, é complicado. Não é sempre que aparece um projeto que te faz dizer: "Meu Deus, é isso que quero fazer; foi por isso que escolhi essa profissão". E com o Rota 66 percebi desde o início a força que a gente tinha nas mãos.
Parte desta força vem da infeliz atualidade da história contada na série, baseada em um livro lançado há 30 anos e que também ainda segue atual. Um exemplo é o que se vê no Rio de Janeiro, que com frequência ocupa os noticiários por conta de ações violentas da polícia nas favelas, onde mais de mil pessoas morreram desde 2016 neste tipo de abordagem, conforme estudo do Instituto Fogo Cruzado.
Para Humberto Carrão, o cenário do Brasil atual é ainda mais alarmante do que aquele descrito na série. Ele espera que, a partir dela, o público possa refletir sobre qual país deseja construir.
— Os números hoje são piores que aqueles que fizeram o Caco escrever essa história. Tenho certeza que quem vive no Brasil entende que aquela realidade da série não é uma realidade da Ditadura, dos anos 1980 ou 90, pois ela continua. Na verdade, é até pior, porque a gente vive hoje um estímulo de volta a esse passado.