Musical é um gênero cinematográfico mais associado a cores e alegria, embora haja obras como Amor, Sublime Amor, cujos contornos sombrios e trágicos foram realçados na recente versão de Steven Spielberg. Mas nada se compara ao que o dinamarquês Lars Von Trier fez em Dançando no Escuro (2000), filme resgatado do limbo digital pela plataforma MUBI.
Vencedor da Palma de Ouro e do prêmio de melhor atriz — concedido à cantora islandesa Björk — no Festival de Cannes, Dançando no Escuro concorreu ao Oscar de canção original (I've Seen It All). O elenco inclui a francesa Catherine Deneuve, estrela de dois musicais revolucionários — Os Guarda-Chuvas do Amor (1964) e Duas Garotas Românticas (1967) —, e o estadunidense Joel Grey, oscarizado coadjuvante de Cabaret (1971).
As sete músicas compostas por Björk, Sjón e Von Trier misturam melodias à la Broadway com arranjos para orquestra, sons de trens e máquinas industriais e batidas techno. Foram reunidas no disco Selmasongs, que conta com a participação de Thom Yorke, vocalista do Radiohead, em I've Seen It All.
A personagem principal, Selma, é uma mulher que viajou da República Checa aos Estados Unidos, nos anos 1960, na esperança de uma vida hollywoodiana, mas mora de aluguel em um trailer na propriedade do policial Bill (David Morse) e de sua esposa, Linda (Cara Seymour).
Mãe solteira que está ficando cega, Selma trabalha em uma usina têxtil — onde tem uma boa amiga, Kathy (Catherine Deneuve), a quem chama de Cvalda, e onde desperta a atração de Jeff (Peter Stormare) — e luta para juntar dinheiro com o objetivo de custear a cirurgia do filho de 12 anos, condenado à mesma doença ocular degenerativa. Selma também participa dos ensaios para uma produção do musical The Sound of Music (conhecido no Brasil como A Noviça Rebelde) e acompanha Kathy ao cinema local, onde juntas assistem a filmes do gênero, que são descritos a ela pela amiga e que alimentam os devaneios a que se entrega como forma de suportar a realidade.
Que fica cada vez mais dura e triste, incluindo sua demissão, um roubo, uma acusação injusta e um crime.
Como é típico no cinema de Lars Von Trier — vide Ondas do Destino (1996), Dogville (2003), Anticristo (2009), Melancolia (2011)... —, Dançando no Escuro é mais um filme sobre o martírio feminino, mais um filme em que uma mulher se sacrifica ou é sacrificada.
Como não é típico no cinema de um dos criadores do Dogma 95 — manifesto lançado em 1995 que pregava um cinema mais realista —, Dançando no Escuro permite-se a fantasia, o artifício, os efeitos visuais, a superprodução (há cenas com até cem câmeras de vídeo gravando simultaneamente). Mas a suposta adesão à indústria de Hollywood é apenas a forma adotada pelo cineasta para exprimir a contestação e a contundência características de sua obra.
Assim resumiu, brilhantemente, a doutora em Literatura Luciana Coronel em artigo publicado no caderno Cultura, de ZH, em 13 de janeiro de 2001:
"Ocorre que agora a maneira pela qual o cinema vai problematizar a vida não é mais a da exposição crua de comportamentos grotescos e desviantes, capazes de causar desprezo e repugnância nos espectadores. (...) Também as cenas musicais podem surpreender os cinéfilos habituados ao tom áspero e rude das imagens dos filmes elaborados por autores signatários do Dogma. Mas de novo percebe-se que a linguagem dos musicais em Dançando no Escuro é parodiada, isto é, ao mesmo tempo incorporada e problematizada.
Fiel aos princípios que desde o início nortearam sua produção cinematográfica, Lars Von Trier não fabrica um musical tradicional, mas discute dentro de seu filme a forma e a função social desse tipo de cinema. Em nenhum momento as cenas compostas de dança e música confundem-se com a história, digamos assim, 'real' da protagonista. Surgindo como pura evasão, elas apresentam textura e ritmos distintos, e só puderam ser tão bem amarradas às demais imagens devido ao uso de tecnologia digital. Os únicos musicais que fazem parte de fato da vida de Selma são os que ela assiste com uma colega da fábrica no cinema depois do trabalho estafante ter sido concluído. Quase cega, ela acompanha os passos dos dançarinos na tela pelos movimentos que a amiga faz com os dedos em sua mão e, assim, se dá uma dose de alegria e de prazer imprescindíveis à continuidade da vida.
Talvez surpreenda os mais incautos o fato de um cineasta 'dogmático' e combativo, que flerta com o marxismo e diz estar contribuindo com seus filmes para a necessária transformação da sociedade, tratar os musicais hollywoodianos não como meros instrumentos de alienação das massas, mas como meios de afirmação de uma humanidade aviltada. Hollywood pode mesmo ser uma usina de sonhos, e Von Trier não nega que o seja, mas nesse último filme ele trata de abordar o uso utópico dos filmes musicais por parte de uma operária que, ao buscar o contato com a música e a dança, afirma sua necessidade de fantasia e de sonho como matérias-primas básicas da existência. Ao filmar a importância dos filmes na vida de uma jovem doente sem nenhuma expectativa de felicidade que não a de poupar o filho do mesmo sofrimento, Lars Von Trier faz metacinema e assim discute o horror do mundo em que vivemos, um mundo em que o cinema pode ser a única fonte de satisfação e plenitude que se tem à disposição, um mundo que precisa do sacrifício de Selma para enxergar que as coisas não vão nada bem".
Björk e Von Trier: os bastidores conturbados de "Dançando no Escuro"
A produção de Dançando no Escuro também ficou distante de um idílio hollywoodiano. Uma edição especial do filme lançada em DVD pela Versátil apresenta mais de uma hora de extras. O destaque é o documentário Os 100 Olhos de Lars von Trier, que acompanha a conturbada filmagem, registrando a tensão da equipe nos três dias em que a protagonista Björk abandonou o set. A experiência teria sido tão traumática que a cantora islandesa jurou jamais voltar a atuar, apesar do prêmio recebido no Festival de Cannes.
O making of mostra o polemista Von Trier dizendo "Eu detesto os atores" e refletindo sobre a relação com a estrela do musical:
— É parecido com casamento. Começa com muitos sentimentos e criatividade e termina com luta pelo poder.
No set de filmagem na Suécia, Björk costumava dizer ao cineasta dinamarquês:
— Senhor Von Trier, eu o desprezo.
A cantora também afirmou:
— Ele precisa de uma mulher para dar alma a seu trabalho. As inveja e as odeia por isso, então precisa destruí-las nas filmagens e esconder as evidências.
Em 2017, no espírito do movimento #MeeToo, que incentiva vítimas de abuso sexual a se pronunciarem contra seus agressores, Björk postou um texto em seu perfil no Facebook no qual, embora não cite o nome de Von Trier, deixa claro que se refere a ele, citado como "diretor dinamarquês":
"É extremamente difícil revelar publicamente algo dessa natureza, especialmente quando (somos) imediatamente ridiculizadas pelos agressores. Eu sinto total empatia com todos que hesitam (em se pronunciar), por anos até. Mas eu sinto que é a hora certa, especialmente agora quando pode fazer a diferença. Aqui segue uma lista de encontros que eu conto como assédio sexual:
Depois de cada take, o diretor corria até mim e colocava seus braços ao meu redor por um longo período na frente de todo o elenco ou até mesmo sozinha, e me acariciava às vezes por vários minutos contra a minha vontade.
Depois de dois meses, eu disse que ele tinha que parar de me tocar, ele explodiu e quebrou uma cadeira na frente de todos no set, (agiu) como alguém que sempre pôde acariciar suas atrizes. Depois todos foram mandados para ir para casa.
Durante todo o processo de gravação, tinha essa paralisação constante, embaraçosa e indesejável (dele) sussurrando ofertas sexuais com descrições bem gráficas. Algumas vezes, até com sua esposa sentada perto de nós.
Quando filmávamos na Suécia, ele ameaçou que iria escalar da sacada de seu quarto (de hotel) até a minha no meio da noite com intenções claramente sexuais, enquanto sua esposa estava no quarto ao lado. Eu fugi para o quarto dos meus amigos. Isso foi o que finalmente me acordou para a severidade de tudo isso e me fez ficar firme em meu lugar".
Em entrevista ao jornal dinamarquês Jyllands-Posten, Lars Von Trier negou ter assediado Björk:
— Não foi o caso. Embora não tivéssemos nos entendido, isso é um fato, ela entregou uma das maiores performances dos meus filmes.