Recém adicionado ao menu do Belas Artes à La Carte, Mar Adentro (2004) imortalizou a figura de Ramón Sampedro, que durante mais da metade de sua vida desejou estar morto. Na verdade, durante mais da metade de sua vida o marinheiro galego sentiu-se morto — ficou preso em uma cama após um mergulho que o deixou tetraplégico.
No cinema, ele foi encarnado por Javier Bardem, que, com sua extraordinária atuação, recebeu a Copa Volpi de melhor ator no Festival de Veneza, onde Mar Adentro também levou o Prêmio Especial do Júri, e contribuiu para as conquistas dos troféus de filme internacional no Oscar e no Globo de Ouro. No Goya, a premiação da Academia Espanhola, foi um arraso: o longa-metragem venceu em 14 categorias.
Quem dirige o filme e também é coautor do roteiro e compositor da trilha é o chileno radicado na Espanha Alejandro Amenábar, que à época gozava de muito prestígio por causa de títulos como Morte ao Vivo (1996), Preso na Escuridão (1997) e Os Outros (2001) — depois, só conseguiu algum destaque com Alexandria (2009) e Enquanto a Guerra Durar (2019). O cineasta deixou de lado o suspense e o terror para voltar sua câmera a um subgênero que é um convite à pieguice: o dos "filmes de doença", o dos filmes de superação.
Mas Mar Adentro emerge da praia do simples melodrama, ancorado em um inusitado senso de humor e na férrea interpretação de Bardem — que pouco tempo depois ganharia o Oscar de ator coadjuvante por Onde os Fracos Não Têm Vez (2006).
Indicado à estatueta de melhor ator por Antes do Anoitecer (2001), Biútiful (2011) e Apresentando os Ricardos (2021), Bardem já havia vivido personagens em cadeira de rodas em Ovos de Ouro (1993) e Carne Trêmula (1997). Em Mar Adentro, para parecer mais velho, submetia-se a cinco horas de maquiagem (que concorreu ao Oscar). Grandalhão, pôs uma armadura nas costas para arqueá-las, encolhendo os ombros, e manteve as mãos e os dedos retorcidos — fora isso, não podia esquecer o sotaque galego.
O filme se concentra no desejo de Ramón de liquidar com sua vida "dignamente". Encerrado na casa do irmão mais velho, onde recebe o carinho da cunhada, Manuela (Mabel Rivera), e a ajuda do sobrinho para escrever seus poemas (leia um deles logo abaixo), Ramón é inabalável em sua determinação.
Duas mulheres entrarão nesse mundo: a advogada Julia (Belén Rueda), disposta a apoiar sua luta pela eutanásia, e a radialista amadora Rosa (Lola Dueñas), que tentará demovê-lo da ideia.
Aí se estabelece o diálogo entre vida e morte proposto por Alejandro Amenábar, que realizou pelo menos uma sequência sublime, tão bonita e tão pungente: com a ária Nessun Dorma, de Puccini, no toca-discos, Ramón se imagina capaz de voar, atravessando a janela, florestas e montanhas até chegar ao mar — o mar que lhe deu a vida e depois a tirou —, mirando ao longe a linha do infinito.
"Mar Adentro", o poema de Ramón Sampedro
Mar adentro, mar adentro
e nesse fundo onde não há mais peso,
onde se realizam os sonhos,
se juntam as vontades
para cumprir um desejo.
Um beijo acende a vida
com um relâmpago e um trovão,
e em uma metamorfose
meu corpo já não é mais meu corpo,
é como penetrar o centro do universo.
O abraço mais pueril
e o mais puro dos beijos,
até vermo-nos reduzidos
a um único desejo:
Seu olhar e meu olhar
como um eco se repetindo,
sem palavras:
mais adentro, mais adentro,
até mais além de todo o resto
pelo sangue e pelos ossos.
Mas me desperto sempre
e sempre quero estar morto
para seguir com minha boca
enredada em teus cabelos.