Três palavras guiaram Agnès Varda à consagração como um dos nomes mais importantes da história do cinema: inspiração, criação e compartilhamento. É a própria realizadora belga que destrincha, no documentário Varda por Agnès, como imprimiu cada uma delas na sua vasta e diversificada filmografia. O filme estreia nesta quinta-feira (9) em Porto Alegre. Foi apresentado por Agnès em fevereiro passado no Festival de Berlim, onde ela ganhou uma calorosa ovação e foi homenageada com a Câmara de Ouro. Morreu um mês depois, aos 90 anos.
Poucos artistas são tão referenciais em seu campo de atuação quanto Agnès Varda. Esse filme-testamento ajuda a dimensionar a “vovozinha gordinha e apaixonada por pessoas”, como a própria se definiu em outro documentário memorialístico, o excepcional As Praias de Agnès, que lançou em 2008 para comemorar seus 80 anos, quando previa encerrar sua jornada atrás da câmera. Não parou. Nos 10 anos seguintes, assinou produções para a TV, um curta e foi indicada ao Oscar de melhor documentário com Visages Villages (2017), assinado em parceria com o fotógrafo JR. Não ganharam, mas Agnès foi reconhecida com um Oscar honorífico – em 2015, já havia ganho do Festival de Cannes a Palma de Ouro honorária.
Varda por Agnès forma com As Praias de Agnès um amplo painel sobre a vida e a obra desse dínamo criativo. São ambos ensaios poéticos que se espelham. No documentário de 2008, o autorretrato potencializa o talento da cineasta, fotógrafa e artista plástica iluminando afetos, amores e paisagens que pontuaram sua vida, em meio às lembranças de filmes emblemáticos como Cléo das 5 às 7 (1962), Sem Teto Sem Lei (1985) e Os Catadores e Eu (2000).
Diálogo fluido entre ficção e documentário
Em Varda por Agnès, é destacado o processo criativo e os bastidores de alguns desses trabalhos. O fio condutor da narrativa é uma palestra de Agnès no palco de um teatro. Diante da plateia, conta histórias e mostra imagens num telão. Lembra seu primeiro filme, o longa La Pointe-Courte (1955), montado pelo amigo Alain Resnais (1922-2014), também um futuro grande cineasta. Fala sobre como manipulou o tempo em Cléo das 5 às 7, para acompanhar pelos ponteiros do relógio o drama de uma mulher à espera de um diagnóstico médico. Volta com a atriz Sandrine Bonnaire ao cenário rural onde rodaram Sem Teto Sem Lei, drama sobre uma jovem andarilha no qual a ficção flerta com o documentário, registro que a diretora dominou como poucos. Comenta seu insight para realizar Os Catadores e Eu, obra-prima em que percorre a França registrando pessoas que recolhem alimentos e objetos descartados – trata-se de uma potente reportagem em que a crítica social soma-se à erudição da autora nas referências para abordar a cultura do desperdício e o desapego material como filosofia de vida.
“Nada é banal, pessoas são extraordinárias”, diz Agnès, justificando seu interesse pela gente comum, personagens que encontrava nas ruas de Paris e tornava protagonistas de pequenas grandes histórias, tanto nos documentários “puros” quanto nos com ambição experimental. Agnès conta ainda como o suporte digital impactou no seu método de trabalho e lhe permitiu uma reinvenção criativa. Gostava de captar, diz, a “maioria silenciosa” – e exibe como contraponto o filme que fez sobre uma “minoria ruidosa”, o radical grupo militante norte-americano Panteras Negras, em 1968. Do período em que viveu nos Estados Unidos com o marido, o também cineasta Jacques Demy (1931-1990), traz O Amor dos Leões (1969), filmado no calor da contracultura hippie e da revolução sexual, no qual sua improvisada mise-en-scène emula quadros de pintores como Picasso e Magritte. Esse diálogo com a pintura passa também por Jane B. por Agnès V. (1988), perfil biográfico-fantástico da atriz Jane Birkin.
Varda por Agnès sublinha ainda a relevante atuação da autora como fotógrafa (à altura dos melhores do ofício) e artista visual (suas obras e instalações multiplataformas circulam por importantes galerias e museus). “A arte atravessa culturas, países, nacionalidades, religiões, épocas”, afirma Agnès.
Que esse filme-testamento possa servir de porta de entrada para se conhecer mais essa instigante artista, que pareceu correr à sombra dos colegas da Nouvelle Vague como a única voz feminina do movimento. Deu seus primeiros passos antes da maioria deles e foi tão longe quanto Jean-Luc Godard, o único que restou na ativa. O tempo mostrou que a baixinha Agnès sempre foi um gigante na turma.
Varda por Agnès
De Agnès Varda. Documentário, França, 2019, 115min, livre. Estreia nesta quinta-feira (9).