Morreu a artista, ficou sua obra. A presença da cineasta Agnès Varda (1928–2019), fundamental sobretudo nos documentários nos quais se transformou em personagem de si mesmo, dava um caráter diferenciado para essa assertiva. Ela se foi, aos 90 anos, em um momento de criatividade e prolificidade (há menos de dois anos lançou o excelente Visages, Villages; há dois meses apresentou o elogiado Agnès by Varda), e seus filmes ficaram. Nesses filmes, no entanto, a impressão que temos é de que sua figura segue ali, cativante, generosa, compartilhando inquietações íntimas que nos fazem refletir sobre a imagem, a memória, a vida a partir das possibilidades e impossibilidades da representação.
Varda sempre esteve por inteiro, completa nos seus filmes – e essa presença não será arrefecida pela sua ausência. Na direção leve porém contundente de Cléo das 5 às 7 (1962), no olhar ao mesmo tempo terno e de denúncia social de Os Catadores e Eu (2000), no delicioso bom humor com que pontua os encontros potentes de Visages, Villages (2017): ao longo de mais de meio século, a artista se reinventou incessantemente, buscando respostas para inquietações conforme as demandas de cada projeto, sem impor limites ou ater-se a convenções, o que fez com que definições como documentário, ficção, verdade e mesmo autoficção soassem sempre ultrapassadas. É tudo representação, embora, em sua obra, Varda pareça estar constantemente questionando essa definição. Sem Teto, Sem Lei (1985) é um filme-síntese desse propósito: com um discurso que se constrói e, simultaneamente, se desconstrói diante do olhar do espectador (a própria Varda anuncia que vai investigar quem é a mulher dada como indigente que é encontrada morta, o que ela faz a partir de entrevistas e encenações, protagonizadas pela atriz Sandrine Bonnaire), a cineasta conta uma história pondo em questão a sua própria abordagem. É a modernidade do cinema em uma de suas características mais marcantes – aprofundada por uma de suas artistas mais importantes.
Varda foi enorme pelo que construiu e pelo que permitiu construir, aí incluído tudo o que o seu trabalho inspirou, que ressoa e seguirá ressoando, em filmes e escritos que aprofundam cada vez mais as possibilidades da linguagem cinematográfica. Uma das lições que ela deixa é justamente a de que essas possibilidades são infinitas – quando se está disposto a encarar os filmes como experiências para os sentidos.
O cinema é um desafio – ao realizador e ao espectador. Varda sempre renovou sua disposição de encará-lo, fazendo de cada uma dessas experiências uma investigação de si própria e do contexto em que vivia. Invariavelmente, ela e todas as suas personagens, mesmo que já sem vida, caso da mulher que fora encontrada morta e inspirou Sem Teto, Sem Lei, saíram maiores dessas investigações – porque sempre surgiram na tela para além de suas meras representações. A cada nova sessão, a cada novo espectador, a cada novo escrito com base no seu trabalho, Varda será maior. "Culpa" de sua obra gigante.
10 filmes essenciais da cineasta
La Pointe-Courte (1955)
Sem lançamento no Brasil, este filme precursor da Nouvelle Vague conta a visita de um casal à vila litorânea do título – momento em que eles passam a discutir a relação.
Cléo das 5 às 7 (1962)
A cineasta apresenta o dia de uma cantora que, enquanto espera o resultado de uma biópsia, circula por Paris e faz um balanço de sua vida.
As Duas Faces da Felicidade (1965)
Jovem pai de família encara possível reviravolta em sua vida ao conhecer uma funcionária dos correios.
Uma Canta, a Outra Não (1977)
Este libelo feminista narra a história de amizade entre duas mulheres – que começa com uma ajuda para a realização de um aborto.
Sem Teto, Sem Lei (1985)
Também conhecido como Os Renegados, este filme conta a trajetória de uma andarilha cujo corpo é encontrado congelado.
Jacquot de Nantes (1991)
Filme sobre a trajetória de um menino que descobre o mundo e decide fazer cinema. Trata-se de uma história inspirada nas memórias do cineasta francês Jacques Demy, com quem Varda foi casada.
Os Catadores e Eu (2000)
Obra-prima do documentário em que Varda percorre a França registrando pessoas que vivem de coletar comida e objetos descartados por outros. A diretora é ela própria uma catadora de histórias que costuram crítica social e referências eruditas para falar do desperdício e do desapego material.
As Praias de Agnès (2008)
Criativo e emocionante inventário da diretora sobre sua vida e obra. Trata-se de um autorretrato documental com reflexões sobre o tempo e a memória que abarcam, com imagens de arquivo, colagens e recriação ficcional, da infância na Bélgica à vida artística em Paris.
Visages, Villages (2017)
Ao lado do artista visual JR, que construiu um furgão em forma de câmera fotográfica, Varda percorre pequenas localidades da França ("villages") para capturar registros de seus moradores ("visages"), depois ampliados em grandes formatos – o que causa impacto nesses personagens da vida cotidiana.
Varda by Agnès (2019)
O mais novo filme da cineasta, espécie de testamento cinematográfico de Varda, expõe seu processo de criação, suas experiências com o ofício e o método de produção que ela chamou de "cinescritura".