Por Giulianna Ronna
Publicitária, mestranda na PUCRS com a dissertação "Uma Forma de Partilhar o Sensível: o Gráfico na Cinescrita de Agnès Varda"
Com mais de meio século de intenso trabalho, Agnès Varda, a catadora de imagens, como gosta de brincar se autodefinindo, nos convida a refletir sobre o tempo, sobre a memória, os apagamentos e os esvaziamentos, sobre a permanência e a resistência e, acima de tudo, sobre o olhar, em seu mais recente trabalho, Visages, Villages, o qual, generosamente, divide a realização com o artista visual JR.
Ao percorrer pequenas cidades francesas em busca de rostos, Varda nos faz olhar além, esbarrando em histórias, vivências e memórias. JR, por sua vez, registra, organiza e amplia as imagens, materializando nessa paisagem não apenas seus habitantes, mas a sensibilidade daquela que sabe para quem e para onde é preciso olhar.
Assim é Varda, comprometida com o social e o político, que ao longo de toda sua carreira sempre procurou redirecionar nossa atenção para o sujeito aparentemente comum. Fiel ao seu estilo, em Visages, Villages, o encontro se dá com trabalhadores, sindicalistas, fazendeiros e garçonetes, protagonistas de suas próprias histórias, que, entrelaçadas à narrativa, contribuem para reposicionar o mapa das nossas percepções.
Nesse rastro, temos a passagem da equipe pelo porto Le Havre. Com uma belíssima composição, Varda opta por fotografar as esposas dos trabalhadores portuários, agigantando suas imagens empilhadas em blocos formados por contêineres, criando uma visualidade que vai muito além da sua representação. Esse é o olhar da diretora de Resposta das Mulheres (1975) e Uma Canta, a Outra Não (1977), que sempre se empenhou em desestruturar os modelos que colocavam a mulher em situação de desigualdade, tanto na construção das personagens como nas temáticas relacionadas à militância feminista.
O trabalho da Varda é marcado por uma expressividade singular na qual a narrativa é constantemente subvertida a favor da sua própria concepção da linguagem cinematográfica, o que ela chama de cinescrita – do francês cinécriture. Seus filmes, que frequentemente dilatam a fronteira entre documentário e ficção, com montagens que favorecem a descontinuidade e o livre fluxo do pensamento, conectam fragmentos que, em perspectiva, dão visibilidade a um olhar particular e sensível.
É exatamente o que encontramos na essência deste último trabalho: um arranjo imagético coerente, estruturado e ao mesmo tempo indefinido e fragmentário, pois, independentemente da sua representação, é uma imagem que não explica, indica sem elucidar. Afinal, é característico do cinema vardiano dar espaço para a improvisação em uma estrutura rigorosamente preparada, na qual o significado não é o foco principal, e sim a imagem, já que, por si só, as imagens significam.
O espectador mais atento vai encontrar referências à demonstração do olhar nos pequenos gestos: ao citar Cléo das 5 às 7, a cena escolhida é o exato momento em que a personagem principal retira os óculos escuros. O mesmo gesto que a cineasta insiste para JR executar ao longo do filme, em citação a Godard, que o fez em sua pequena participação no mesmo filme acima mencionado (e que certamente carrega desdobramentos maiores). Também está nos olhos dos peixes; na citação a Buñuel; nas imagens ampliadas dos olhos; nas selfies espalhadas por toda a narrativa, espontâneas ou conduzidas pela cineasta; na visão debilitada, no teste representado e que logo é pontuado por Varda: "Depende de como vemos as coisas – em um recuo – ou de um ponto mais alto".
Em meio às ironias e brincadeiras típicas da cineasta, ao deslizar pelo Museu do Louvre, é Varda quem se afasta de Godard, que em seu Bando à Parte (1964) escolheu apenas lá correr. A cinescritora, por sua vez, privilegia o olhar, nomeando o que vê enquanto corre, desliza, flutua. Cena, aliás, de uma delicadeza ímpar. No desfecho, o protagonismo não fica por conta de quem não é visto, ainda que o invisível seja parte integrante do quadro, mas situa-se nas incontáveis formas de ver, sentir e pensar uma imagem.