O filme mais polêmico do ano estreia nesta quinta-feira (21) nos cinemas: Som da Liberdade (Sound of Freedom, 2023). Dirigido por Alejandro Monteverde, traz Jim Caviezel no papel de Timothy Ballard, um ex-agente da Segurança Nacional dos EUA que se tornou um combatente do tráfico sexual de crianças. As controvérsias são muitas e variadas. Estão relacionadas tanto à história contada quanto a seus bastidores. Até seu sucesso de bilheteria gera celeuma.
Escrito pelo mexicano Monteverde, diretor de Little Boy: Além do Impossível (2015), com Rod Barr, Som da Liberdade se baseia na trajetória de Ballard, fundador e ex-CEO da Operation Underground Railroad (OUR), uma organização de combate ao tráfico de pessoas para exploração sexual. Quando o filme começa, o personagem vivido por Caviezel, coadjuvante em Além da Linha Vermelha (1998) e protagonista de A Paixão de Cristo (2004), ainda trabalha na Segurança Nacional. Está envolvido em uma operação para prender um sujeito que compartilha pornografia infantil na internet. A ação é bem-sucedida, mas deixa um travo amargo.
— Quantos pedófilos você já prendeu? — pergunta um colega.
— Agora, 288 — orgulha-se Ballard.
— Quantas crianças você encontrou? — retruca seu interlocutor.
A resposta é um silêncio retumbante.
Entrementes, em Tegucigalpa, capital de Honduras, Roberto (José Zúñiga) leva seus filhos, a menina Rocío (Cristal Aparicio) e o pequeno Miguel (Lucás Ávila), para um teste de modelo agenciado por uma ex-miss, Katy (Yessica Borroto Perryman). A presença dos pais não é permitida na sessão de fotos — algo que já deveria ter feito o personagem voltar atrás. Quando a porta se fecha, torna-se o único elemento iluminado pela boa direção de fotografia assinada pelo espanhol Gorka Gómez Abreu (da fantasia medieval Irati, vista no Fantaspoa 2023). Seu compatriota, o compositor Javier Navarrete, indicado ao Oscar por O Labirinto do Fauno (2006), acentua a dramaticidade da trilha sonora — que, ao longo do filme, se revelará incomodamente onipresente. Aquele é um ambiente perverso, onde, pouco a pouco, as crianças são orientadas a abrir um decote na roupa, a passar batom nos lábios, a jogar os cabelos para o lado, a fazer poses que só no mundo dos adultos poderiam ser consideradas sensuais.
Quando Roberto retorna para buscar os filhos, não há mais vestígio algum deles na sala agora vazia — e, em um desafio enorme à suspensão da descrença do espectador, também não há outros pais à procura das demais crianças que faziam companhia a Rocío e Miguel. Logo descobrimos que eles foram levados à força para Cartagena, na Colômbia, onde estarão à venda para uma clientela que, diz Som da Liberdade, inclui líderes políticos e grandes empresários.
Resgatar Rocío e Miguel passa a ser a missão de Tim Ballard nesta mistura de drama e filme de ação que, dentro do gênero, é bastante parado e genérico, ainda que com cenas capazes de embrulhar o estômago apenas pelo poder da sugestão. Outro diferencial é o tom religioso — "As crianças de Deus não estão à venda", ouve-se mais de uma vez. "Quando Deus te diz o que fazer, você não pode hesitar", afirma o Vampiro (Bill Camp, das minisséries The Night Of e O Gambito da Rainha), um ex-integrante do cartel das drogas que agora se dedica a desbaratar a rede de prostituição infantil.
Esse enredo fez Som da Liberdade ser abraçado pela extrema direita cristã dos EUA e pelos adeptos do movimento QAnon, teoria conspiratória segundo a qual o país é governado por "forças ocultas envolvidas em redes pedófilas internacionais" que buscam estabelecer uma "nova ordem mundial". Não à toa, o ex-presidente Donald Trump chegou a promover em sua casa uma sessão especial do filme, com a presença de Tim Ballard, Jim Caviezel e do produtor Eduardo Verástegui. Antes, em 2021, ao divulgar o longa-metragem durante participação online em uma convenção, o ator fez referência ao "adrenocromo": políticos e celebridades colheriam e beberiam o sangue de crianças amedrontadas para obter uma substância química que interromperia o processo de envelhecimento.
Cumpre dizer que o roteiro de Monteverde e Barr não envereda nem pela seara política nem pelo campo do bizarro, preferindo se concentrar no heroísmo do protagonista. A propósito: após os créditos, há uma mensagem em vídeo em que Caviezel define a obra como "A Cabana do Pai Tomás do século 21", uma referência ao romance publicado em 1852 por Harrier Beecher Stowe que se tornou uma peça fundamental na luta pela abolição da escravidão.
E aí surgem outros pontos que provocam discussão. Segundo veículos da imprensa estadunidense, a Operation Underground Railroad (OUR) faz falsas alegações sobre suas façanhas, recebendo crédito por missões e resgates dos quais não participou, além de não dar apoio adequado às vítimas salvas.
Tim Ballard, por sua vez, foi acusado de assédio sexual por pelo menos sete mulheres, segundo recente reportagem da Vice. Ele teria convidado elas para agirem como sua "esposa" em missões secretas no Exterior, coagindo-as a compartilharem a cama ou tomarem banho juntos, alegando que isso era necessário para enganar os traficantes. Ballard, que é casado e tem nove filhos (dois deles adotados), renunciou ao cargo de CEO da OUR em junho e, segundo a própria organização, "está permanentemente afastado". Ele estaria planejando concorrer ao Senado dos EUA pelo Partido Republicano, o mesmo de Trump.
Por fim, há a polêmica do sucesso de bilheteria. Os números impressionam: orçado em US$ 14,5 milhões, Som da Liberdade arrecadou US$ 183,2 milhões nos EUA, ocupando o décimo lugar no mercado doméstico (é o 17º no global, com US$ 211,6 milhões), à frente de Indiana Jones e a Relíquia do Destino (US$ 174,4 milhões) e da primeira parte de Missão: Impossível 7 (US$ 172 milhões). Mas muitos desses ingressos foram comprados por congregações cristãs, empresários e pela própria produtora do filme, a Angel Studios, para distribuição gratuita. Como resultado, há relatos de que sessões com entradas praticamente esgotadas estavam, na verdade, com vários lugares vazios. No Brasil, o mesmo pode acontecer, pois a distribuidora Paris Filmes está realizando promoções do tipo "acima de 20 ingressos, meia-entrada para todos".