Bonito não é — ou não deveria ser — um adjetivo associado a filmes de guerra, mas pode-se abrir uma exceção a Além da Linha Vermelha (The Thin Red Line, 1998), uma obra-prima do cineasta estadunidense Terrence Malick disponível no Star+.
Premiado com o Urso de Ouro no Festival de Berlim, Além da Linha Vermelha disputou sete categorias do Oscar: melhor filme, direção, roteiro adaptado (pelo próprio Malick), fotografia (John Toll), edição (Billy Weber, Leslie Jones e Saar Klein), som e música original (Hans Zimmer) — mas não venceu em nenhuma.
O longa-metragem marcou o retorno de Malick após 20 anos de reclusão — seu último título havia sido Cinzas no Paraíso (1978), sucessor de sua estreia, Terra de Ninguém (1973). De lá para cá, o ritmo foi bem mais intenso. Fez O Novo Mundo (2005), A Árvore da Vida (2011), Amor Pleno (2012), Cavaleiro de Copas (2015), o documentário Voyage of Time (2015), De Canção em Canção (2017) e Uma Vida Oculta (2019), além de três curtas. Hoje com 78 anos, está na pós-produção de The Way of the Wind, uma releitura de vários episódios da vida de Jesus Cristo.
A religiosidade — não necessariamente a religião — é uma marca de seus filmes. Em Além da Linha Vermelha, desde as primeiras imagens, há a procura por um deus como contraponto à figura da morte que paira no pensamento dos soldados. Esses são flagrados em divagações existenciais, expressas com narrações em off na primeira pessoa. É uma mescla de memória e sonho ilustrada por cenas em que o cineasta trabalha outro de seus temas: a relação entre o homem e a natureza, pautada ora pelo diálogo, ora pelo pertencimento, ora pelo confronto.
O filme é baseado no romance homônimo de James Jones sobre um sangrento combate da Segunda Guerra Mundial entre estadunidenses e japoneses na paradisíaca ilha de Guadalcanal, no Pacífico, onde o próprio autor foi ferido. É o segundo tomo de uma trilogia de guerra — o primeiro gerou o clássico A um Passo da Eternidade (1953).
Guadalcanal é uma das Ilhas Salomão, a leste da Nova Guiné e a nordeste da Austrália. Descoberta em 1788, virou protetorado inglês a partir de 1893. Na Segunda Guerra, o Eixo Roma-Berlim-Tóquio dava ao Japão sinal verde para ocupação de territórios no Pacífico. Numa ofensiva longamente preparada, o país bombardeou em dezembro de 1941 a base de Pearl Harbor, no Havaí, numa ação que provocou a entrada dos Estados Unidos no maior conflito militar do século 20. Em seguida, os japoneses tomaram as ilhas de Hong Kong e Cingapura (controladas pelos britânicos) e chegaram a ameaçar a Nova Guiné e a Austrália. Guadalcanal foi ocupada em maio de 1942.
A ofensiva japonesa forçou o presidente estadunidense Franklin Roosevelt e o primeiro-ministro britânico Winston Churchill a criar um comando militar conjunto (que incluía forças australianas e holandesas) para o Sudeste Asiático e o Pacífico. O comando logo se dissolveu, e os Estados Unidos encarregaram o general Douglas McArthur e o almirante Chester Nimitz de dirigir as operações. A contraofensiva aliada começou por Guadalcanal, que também havia sido o ponto máximo de expansão das forças japonesas no sudoeste do Pacífico. No dia 7 de agosto, a Marinha dos EUA realizou um ataque surpresa à ilha, com desembarque de marines (fuzileiros navais). Violentas batalhas se estenderam por seis meses. O triunfo dos Aliados possibilitou a recuperação dos arquipélagos Marshall, Carolinas e Marianas e a campanha de libertação das Filipinas.
Esse é o contexto militar de Além da Linha Vermelha. O título vem de uma frase do livro: "Existe apenas uma tênue linha vermelha entre sanidade e loucura". Locado em Guadalcanal e, principalmente, na Austrália, o filme conta a história de um grupo de membros da companhia de artilharia chamada C de Charlie. Seu objetivo é conquistar uma colina dominada pelos japoneses.
Além da Linha Vermelha é uma mistura impressionante de lirismo e violência. Alterna cenas contemplativas da paisagem, poéticos flashbacks e sequências de combate. Mas, muito mais do que a guerra, o tema central de Malick é o horror que os homens descobrem dentro de si próprios quando estão em combate — lembrando Apocalypse Now (1979), filme sobre a Guerra do Vietnã realizado por um colega de geração e de ideias do diretor, Francis Ford Coppola.
Entre os personagens, estão o amargurado tenente-coronel Tall (Nick Nolte), o cínico sargento Welsh (Sean Penn), o heroico capitão Gaff (John Cusack), o trapalhão sargento Keck (Woody Harrelson), o inseguro cabo Fife (Adrien Brody) e os soldados Witt (Jim Caviezel), filosófico, e Bell (Ben Chaplin), que tem medo de perder a mulher para outro homem.
Como alguns críticos apontaram, Malick, antes de os soldados desembarcarem na ilha, passeia por cada rosto em closes, como se quisesse nos familiarizar tanto com os personagens quanto com os sentimentos que ali reinam — medo, relutância, convicção. Mas, quando desembarcam, os rostos se misturam, poucos se diferem um do outro, todos igualmente vulneráveis ao efeito devastador da guerra, ao barulho das granadas, à perda dos companheiros diante dos próprios olhos.
O elenco de Além da Linha Vermelha poderia ser mais estelar ainda. Quando Malick anunciou que voltaria a filmar, muitos astros de Hollywood se ofereceram para trabalhar. Alguns, como Brad Pitt, Leonardo DiCaprio e Nicolas Cage, foram recusados, quase sempre porque o diretor não queria nomes excessivamente famosos.
Outros, como Billy Bob Thornton, Martin Sheen, Gary Oldman, Bill Pullman, Jason Patric, Viggo Mortensen e Mickey Rourke, foram removidos da versão final — o primeiro corte, que demorou sete meses para ser montado, tinha cinco horas de duração (ficou em 170 minutos). Melhor sorte tiveram John Travolta e George Clooney, que aparecem em breves minutos dos 170 de filme.