Já virou tradição na Netflix: a cada dezembro, a plataforma de streaming lança um filme apocalíptico estrelado por pelo menos um grande nome de Hollywood. Em cartaz desde sexta-feira (8) e top 1 nesta segunda (11), O Mundo Depois de Nós (Leave the World Behind, 2023) traz no elenco Julia Roberts, vencedora do Oscar de melhor atriz por Erin Brockovich (2000) e indicada por Flores de Aço (1989, como coadjuvante), Uma Linda Mulher (1990) e Álbum de Família (2013, também como coadjuvante); Mahershala Ali, duas vezes oscarizado como ator coadjuvante, primeiro por Moonlight (2016) e depois por Green Book (2018); e Ethan Hawke, que já concorreu quatro vezes à estatueta dourada — duas como coadjuvante, por Dia de Treinamento (2001) e Boyhood (2014), e duas na categoria de roteiro adaptado, por Antes do Pôr do Sol (2004) e Antes da Meia-Noite (2013).
Os gêneros desses filmes sobre o fim do mundo variam — tem terror, tem ficção científica, tem comédia, tem suspense, tem título que mistura um pouco de tudo —, assim como as ameaças: pode ser um cometa, pode ser um monstro, pode ser um acidente químico, pode ser um ataque cibernético, pode ser um desastre indefinido. A tensão vem acompanhada por reflexões que chegam a ser globais, envolvendo temas ambientais, sanitários, sociais, políticos, econômicos etc, mas quase sempre o foco está sobre os Estados Unidos — a paranoia, o racismo, o pendor belicista, a desilusão das famílias suburbanas. E, dada a época do ano, são comuns as cenas de congraçamento, as mensagens de esperança e as lições de vida.
O costume da Netflix começou com Bird Box (2018), filme no qual Sandra Bullock interpreta uma mãe que tenta encontrar um lugar seguro para ela e seus filhos em um mundo invadido por entidades sobrenaturais: aqueles que as enxergam se matam instantaneamente.
Em O Céu da Meia-Noite (2020), George Clooney encarna um astrônomo que em 2049, sozinho em uma estação no Ártico, busca mandar uma mensagem urgente para uma missão da Nasa que estava em K-23, um exoplaneta habitável: seus tripulantes não devem voltar. A Terra está morrendo, vítima de uma catástrofe não especificada (talvez o aquecimento global, talvez uma pandemia ainda mais devastadora do que a da covid-19).
Em Não Olhe para Cima (2021), Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence procuram alertar a humanidade sobre a aproximação de um cometa que, dentro de seis meses, destruirá a Terra. Mas eles esbarram no negacionismo da sociedade, na sobreposição de objetivos políticos a informações científicas, na ambição dos empresários e na alienação da mídia.
Em Ruído Branco (2022), a família dos personagens de Adam Driver e Greta Gerwig tem a vida virada do avesso quando o derramamento de produto químico causa a formação de uma nuvem tóxica na área onde moram.
Produzido pelo casal Barack Obama e Michelle Obama, O Mundo Depois de Nós é a adaptação de um romance escrito por Rumaan Alam. O roteiro e a direção são assinados por Sam Esmail, criador da série Mr. Robot (2015-2019), um dos autores do seriado Homecoming (2018-2020), que na primeira temporada tinha Julia Roberts como protagonista, e um dos produtores executivos da minissérie Gaslit (2022), outro trabalho da atriz. Na retomada da parceria com Esmail, ela encarna uma personagem bem diferente daquelas que lhe valeram o apelido de "namoradinha da América": logo na primeira cena, diz que "odeia as pessoas pra caralho" (no original em inglês, "I fucking hate people").
Essa personagem se chama Amanda, é uma bem-sucedida executiva da publicidade em Nova York e tem como marido o professor universitário Clay (Ethan Hawke), que gosta de levar a vida de um jeito mais despreocupado. Eles são pais de dois adolescentes, Archie (Charlie Evans) e a caçula Rose (Farrah Mackenzie). Numa noite de insônia, Amanda aluga uma casa em Long Island para a família passar o fim de semana.
As coisas não saem como o planejado. A falta de sinal da internet impede Rose de assistir ao último capítulo da série que acabou de descobrir e se tornar fã, Friends (1994-2004) — a letra da canção de abertura, I'll Be There for You, será usada como um comentário muito irônico no final do filme, que é tão óbvio quanto inevitável, já que desde o início vinha sendo esfregado na nossa cara. Quando pais e filhos vão fazer um piquenique à beira-mar, são surpreendidos por um enorme petroleiro desgovernado que avança praia adentro, até atolar na areia.
Mas a maior surpresa ainda estava por vir. À noite, bate na porta um homem negro trajando um smoking (papel de Mahershala Ali) e sua filha de 20 e poucos anos (Myha'la, da série Industry). Ele se apresenta como G.H. Scott e diz que é o dono da casa, com quem Amanda trocou e-mails, e que ele resolveu vir tentar a sorte em Long Island por causa de um apagão em Nova York — sem energia elétrica, não tinham como subir ao apartamento no 16º andar de um prédio de luxo na Park Avenue.
Nessa interação, surge um dos pontos mais bem explorados por O Mundo Depois de Nós: a tensão racial. Desde o primeiro contato, Amanda deixa claro seu racismo, embora nunca o verbalize com todas as letras. Ela é tão consciente da supremacia branca, que desconfia de G.H. — quando pergunta se aquela é mesmo sua casa, enfatiza o "sua". Pouco depois, após o personagem de Mahershala Ali sugerir que as duas famílias durmam por lá para na manhã seguinte tentarem entender o que está acontecendo, a pausa que Amanda faz no meio de uma frase a trai por completo:
— Eu não me sinto à vontade ficando numa casa com... pessoas que eu não conheço.
São esses diálogos carregados de risco que sustentam o interesse do espectador, e não necessariamente os mistérios acerca dos apagões (estranhamente, a energia elétrica local é poupada: as luzes seguem funcionando à noite, os celulares, ainda que sem internet, seguem com bateria) que, como de hábito, serão bem explicadinhos ao final. Hollywood tem pavor da incerteza, da dúvida, da possibilidade de o público tirar suas próprias conclusões ou formular suas próprias interpretações.
Por vezes, O Mundo Depois de Nós parece um episódio estendido — e genérico — de Black Mirror. Em outras, remete ao cinema de M. Night Shyamalan, diretor especializado em propor uma abordagem mais intimista do fim do mundo (vide o já clássico Sinais, vide o recente Batem à Porta, vide também Tempo, que acaba de entrar no menu da Netflix). E volta e meia resvala para convenções dos filmes apocalípticos, a despeito de uma sequência realmente criativa, impactante e — o pior — plausível que ocorre em uma estrada. A salada cozinhada por Sam Esmail inclui nossa dependência tecnológica, a crença em teorias da conspiração, o individualismo diante do perigo, a resposta da natureza à ação predatória do homem e a necessidade de encontrarmos ilhas de normalidade (ou de fuga) em meio ao caos (ou a problemas sérios), além da fatídica cena em que dois personagens absolutamente opostos encontram um ponto de conexão e desfrutam de um momento descontraído, leve, quase gostoso demais — e extremamente artificial no corpo da narrativa.