Como se espelhasse a situação vivida por seus personagens, Tempo, o mais recente filme do diretor M. Night Shyamalan, chegou às telas do cinema, em julho, e do streaming, recentemente (está disponível em Apple TV, Google Play e YouTube), já um tanto envelhecido. Há dois fatores preponderantes para esse desgaste.
O primeiro é a própria propaganda. Os trailers mostram demais do que acontece em uma praia deserta e paradisíaca onde um grupo de veranistas começa a sofrer os efeitos do tempo de um modo terrivelmente rápido — daí o título original, Old, velho em inglês. O conhecimento prévio e a memória visual inibem, ou até impedem, o espanto pretendido por Shyamalan. Parece que o marketing sabotou o nítido esforço de intrigar o espectador — vide as posições de câmera e os enquadramentos que escondem as transformações corporais, vide o uso da trilha sonora em cenas que só devem surpreender quem evitou a exposição maciça à publicidade. (Em nome de quem sobreviveu a isso, aqui não haverá spoilers, nem mesmo os antecipados.)
O segundo é o próprio Shyamalan, 50 anos. Desde O Sexto Sentido (1999), que lhe valeu suas duas únicas indicações ao Oscar (melhor direção e melhor roteiro original), assistimos a um filme do cineasta indiano naturalizado estadunidense intuindo que haverá um plot twist — não raro, explicativo. Afinal, reviravoltas marcam títulos como Corpo Fechado (2000), Sinais (2002), A Vila (2004), A Dama na Água (2006), A Visita (2015) e Fragmentado (2016). Sabemos que existe algo por trás dos estranhos acontecimentos no fictício Anamika Resort de Tempo, só nos resta, ora, esperar a solução. E, para o bem ou para o mal, eis um diretor que não tem medo de se arriscar, de exagerar, de tirar o chão do espectador.
A propósito, eis um artista da manipulação, tanto do público quanto de seus personagens. Em Tempo, Shyamalan transforma em um exercício metalinguístico a tradição de aparecer em seus filmes, como fazia seu mestre Alfred Hitchcock: no papel de um motorista de van, o diretor e roteirista é o responsável por levar duas famílias à praia do envelhecimento. A principal delas é formada pelo casal Guy e Prisca e por seus filhos Maddox, 11 anos, e Trent, seis. A outra tem o médico Charles, sua mãe idosa, Agnes, sua esposa mais jovem, Chrystal, e a filha dela, Kara.
Outras peças vão se juntar a esse tabuleiro onde, agora contrariando sua tradição, Shyamalan vai jogar longe da Pensilvânia (Estado para o qual seus pais se mudaram quando ele tinha seis anos) e mais ou menos pelas regras de outra pessoa — Tempo é um de seus raros longas-metragens que não partem de uma ideia sua: foi baseado em uma história em quadrinhos, Castelo de Areia, escrita pelo francês Pierre Oscar Lévy e desenhada pelo suíço Frederik Peeters, que em 2021 foi relançada no Brasil pela editora Tordesilhas. Trata-se de um microcosmo que permite ao cineasta brincar de Deus — e a escalação de um elenco globalizado reflete essa ideia de criação de mundo. Temos o mexicano Gael García Bernal (Guy), a luxemburguesa Vicky Krieps (Prisca), a neozelandesa Thomasin McKenzie (Maddox), o estadunidense Alex Wolff (Trent), o inglês Rufus Sewell (Charles), a australiana Abby Lee (Chrystal), o sueco Gustaf Hammarstein (que faz o dono do resort); temos negros (Aaron Pierre e Nikki Amuka-Bird) e asiáticos (Ken Leung e o próprio Shyamalan), idosos (Kathleen Chalfant, 76 anos) e crianças (Nolan River, nove).
Pouco a pouco, Shyamalan colocará à prova a sanidade física e mental de seus peões, que parecem mesmo não ter uma vida própria: alguns são como caricaturas (com honrosas exceções, a direção de elenco não é o forte do cineasta). Como de hábito em seu cinema, a câmera é um personagem à parte, fazendo a varredura dos ambientes, desnudando momentos de intimidade, girando em torno de pessoas que estão desnorteadas, construindo a atmosfera de suspense, sugerindo ou explicitando o horror.
Também como de hábito em seu cinema, pistas são espalhadas desde o início da trama — preste atenção, por exemplo, nos diálogos iniciais de Guy, Prisca, Maddox e Trent. É através de seus olhos que Tempo ganha ressonância nesta época de pandemia: a família está confinada (o distanciamento social, podemos dizer) naquela praia, onde a presença de outras pessoas (a aglomeração) é uma ameaça, enquanto seus filhos crescem em uma velocidade espantosa (a rotina das crianças foi bastante limitada pela covid-19, mas eles seguem ficando mais velhos a cada dia que passam dentro de casa); o tempo não para, a natureza (o vírus) é implacável, então cabe a nós aparar arestas, ligar o passado ao futuro, reagirmos com o que temos de melhor — mas é claro que alguns reagem com o que têm de pior.
E, como é de hábito no cinema de Shyamalan, a fixação pelos plot twists pode se revelar uma faca de dois gumes. Se por um lado dá margem para ambições mais, digamos, científicas de seu diretor, por outro corta o peso metafísico de seu filme. Diante das ondas de violência e do mar de explicações, Tempo acaba se mostrando como um castelo de areia: uma obra que exerce fascínio por seu engenho, mas que está fadada a ser efêmera.