Às 22h35min da última terça-feira (5), recebi cinco mensagens de WhatsApp da minha colega Marina Krapf, que atua como analista de conteúdo digital em GZH. Ela estava entusiasmada com um filme que acabara de assistir: Monster (Kaibutsu, 2023), do diretor japonês Hirokazu Kore-eda, que segue em cartaz no Espaço Bourbon Country, com sessões às 15h40min e às 20h. "Super envolvente e com várias camadas nas histórias de todos os personagens", escreveu ela, que também destacou a baixíssima presença de público: "Eu e mais duas pessoas no cinema".
É uma pena, pois estamos diante de um dos melhores filmes de 2023. A renomada crítica Isabela Boscov, por exemplo, em seu canal no YouTube, disse que Monster era o seu preferido na temporada. Ela também resumiu bem o cinema de Kore-eda, 61 anos: "Os dramas anônimos das pessoas comuns, as tragédias silenciosas que passam despercebidas dos outros, aquelas angústias que a gente vive em segredo e, também, aquelas rasgos de beleza que a vida proporciona".
O cineasta japonês é um competidor assíduo no Festival de Cannes: nove de seus longas-metragens já disputaram a Palma de Ouro ou a mostra Um Certo Olhar. Kore-eda recebeu o troféu máximo por Assunto de Família (2018) — que também concorreu ao Oscar de filme internacional — e o Prêmio do Júri por Pais e Filhos (2013). Ninguém Pode Saber (2004) laureou o então adolescente Yuya Yagira como melhor ator, mesma categoria vencida por Song Kang-ho, de Broker: Uma Nova Chance (2022), que foi realizado na Coreia do Sul. E Monster teve premiado o seu roteiro, assinado por Yuji Sakamoto.
Acumulando as funções de diretor, roteirista e editor, Kore-eda costuma examinar idiossincrasias, contradições, fissuras e tristezas da vida familiar e da sociedade japonesa. Em Ninguém Pode Saber, conta a história de quatro crianças, com idades entre cinco e 12 anos, cada um com um pai diferente, que são abandonadas pela mãe. No apartamento onde moram, em Tóquio, os três mais novos são considerados ilegais, portanto, não podem sair de casa, nem para estudar.
Em Pais e Filhos, duas famílias descobrem que os filhos de seis anos foram trocados no dia do nascimento no hospital, o que as leva a decisões agonizantes e expõe as diferenças sociais entre esses núcleos, deixando-os psicologicamente arrasados.
Assunto de Família retrata um grupo de marginalizados resgata uma menina de pais abusivos, iniciando-a no clã de pequenos roubos, que parece ter uma conexão mais autêntica do que a das famílias que compartilham o mesmo DNA.
De Monster, não se pode falar muito, porque Kore-eda oferece um quebra-cabeças a ser montado pelo espectador — que não necessariamente vai enxergar o quadro por completo. Como o filme aponta, cada pessoa vive uma história do seu jeito, cada um de nós tem seu ponto de vista, e o somatório nem sempre preenche todas as lacunas. Podemos, também, interpretar mal ou ignorar algo crucial devido a valores, preconceitos, normas de conduta.
Por refletir sobre o que é a verdade e pela estrutura narrativa, Monster se filia a um dos maiores clássicos do cinema japonês, premiado no Oscar e no Festival de Veneza: Rashomon (1950), de Akira Kurosawa, em que quatro testemunhas apresentam versões dúbias e conflitantes de um crime. O filme foi adaptado como faroeste hollywoodiano em Quatro Confissões (1964), de Martin Ritt, e serviu de inspiração para muitos outros, como Os Suspeitos (1995), de Bryan Singer, Coragem sob Fogo (1996), de Edward Zwick, Olhos de Serpente (1998), de Brian De Palma, Herói (2002), de Zhang Yimou, Vamos Nessa! (2005), de Doug Liman, Ponto de Vista (2008), de Pete Travis, A Criada (2016), de Park Chan-wook, e O Último Duelo (2021), de Ridley Scott. E o chamado efeito Rashomon extrapolou o campo cinematográfico, sendo empregado ou estudado também em áreas como jornalismo, psicologia, sociologia, história e justiça.
A trama de Monster começa mostrando o cotidiano de uma mãe jovem e viúva, Saori (a ótima atriz Sakura Ando), com seu filho de 10 anos, Minato (Soya Kurokawa). Quando o menino passa a se comportar de maneira estranha — volta para casa com apenas um pé do tênis, corta ele próprio o cabelo — e a exibir sinais de violência (sua orelha chega a sangrar), ela resolve ir à escola para confrontar o professor Hori (Eita Nagayama), que seria o responsável, quem sabe o "monstro" do título.
Nessa primeira parte, Monster adota a perspectiva da mãe. Na segunda, a história é contada pelos olhos do professor. Por fim, acompanhamos os fatos junto a Minato e um colega de aula, Yori (Hinata Hiiragi). As jornadas são pontuadas pelo melancólico piano de Ryuchi Sakamoto, em uma de suas últimas trilhas sonoras — o compositor japonês oscarizado por O Último Imperador (1987) morreu em março, aos 71 anos.
Ao longo dessas três partes, Monster remete a outro belo filme contemporâneo que aborda um de seus temas mais ou menos ocultos (se quiser, por conta e risco, saber qual é, clique aqui). No comando de um elenco encantador, Hirokazu Kore-eda faz transparecer sua delicadeza e sua compaixão ao mesmo tempo em que retrata a monstruosidade da intolerância com o diferente, do bullying escolar, dos julgamentos precipitados e do corporativismo das instituições coletivas ("A maioria tende a se proteger, à custa de muitas outras coisas", declarou em entrevista). Também estão em foco as mentiras com as quais os adultos sufocam suas dores e o mundo de imaginação em que as crianças se refugiam.
Fecho a coluna citando mais uma vez Isabela Boscov: "Isso que eu nem falei do final, nem vou falar. Mas meu Deus... O final...".