Do último dia de dezembro para cá, muitos filmes imperdíveis ou com cara de Oscar estrearam no streaming.
Alguns foram lançados diretamente nas plataformas, como No Ritmo do Coração, bem cotado para receber indicações ao Oscar (a lista será anunciada pela Academia de Hollywood no dia 8), e Titane, ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes. Outros chegaram após cumprir temporada nas salas de cinema.
A lista abaixo reúne 10 títulos (clique nos links se quiser saber mais). Deixei de fora o fenômeno de audiência Não Olhe para Cima (Netflix) — imagino que a esta altura do campeonato todo mundo já tenha pelo menos sido exposto a uma chuva de comentários, nas redes sociais, sobre a comédia do negacionismo estrelada por Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, Meryl Streep e Timothée Chalamet.
A Filha Perdida (2021)
Em seu primeiro longa-metragem como diretora, a atriz estadunidense Maggie Gyllenhaal adapta o romance homônimo publicado pela escritora italiana Elena Ferrante em 2006. É protagonizado pela inglesa Olivia Colman, oscarizada por A Favorita (2018) e, com o perdão da repetição, favorita ao Oscar no papel de Leda Caruso, uma professora universitária que, durante suas férias em uma praia da Grécia, fica obcecada por uma jovem mãe (Dakota Johnson) e sua filha. A partir de então, Leda se vê confrontada por memórias dos tempos em que ela própria (encarnada por Jessie Buckley) tinha de lidar com suas duas crianças. A trama de mistério e perigo é entrelaçada à abordagem, com despudor, de temas como maternidade, sexualidade, papéis sociais e ambição profissional. (Netflix)
The House (2022)
Se você curte animações sombrias e esquisitas, com um senso de humor mórbido, a dica é assistir a esta coprodução entre EUA e Inglaterra com a técnica stop-motion. O filme consiste em três episódios que giram em torno da casa citada no título. São três fábulas que falam sobre cobiça, integridade, a fragilidade das aparências, a natureza destruidora do ser humano, adaptação e laços afetivos. A de abertura tem como diretores Emma De Swaef e Marc James Roels. Em 1800, Raymond (voz de Matthew Goode), um decadente pai de família, recebe, de um misterioso benfeitor, uma oferta irrecusável, a de se mudar para uma mansão — parece um típico pacto com o diabo, cheio de momentos aterradores. A segunda história, dirigida por Niki Lindroth von Bahr, se passa nos dias de hoje. Um rato antropomorfizado (Jarvis Cocker) está reformando a tal residência para vendê-la por um preço alto, mas inquilinos e convidados indesejados atrapalham terrivelmente seus planos. Apesar do final bizarro e simbólico, é o segmento menos interessante. O último, realizado por Paloma Baeza, traz as vozes de Helena Bonham Carter, Paul Kaye, Will Sharpe e Susan Wokoma. Embora seja ambientado em um futuro distópico, é o mais solar da antologia. A gata Rosa, que sonha em restaurar a propriedade, vive em atrito com o pescador Elias e a hippie Jen, que só pagam o aluguel com peixes e pedras. Mas dinheiro não é tudo na vida. (Netflix)
King Richard: Criando Campeãs (2021)
O filme dirigido por Reinaldo Marcus Green pode valer a terceira indicação de Will Smith ao Oscar de melhor ator — ele já ganhou o Globo de Ouro e concorre ao troféu do Sindicato dos Atores dos EUA (e King Richard também disputa a premiação da Associação dos Produtores e a categoria de script original do Sindicato dos Roteiristas). Como em Ali (2001) e em À Procura da Felicidade (2006), Smith encarna um personagem real. A exemplo do boxeador Muhammad Ali, Richard Williams faz do esporte uma arena para o combate ao racismo. A exemplo do pai desempregado Chris Gardner, não mede esforços para garantir um futuro melhor para as filhas, as tenistas Venus e Serena Williams. Pena que King Richard se concentre tanto na figura do protagonista, nublando o talento e a autodeterminação das garotas — interpretadas respectivamente por Saniyya Sidney e Demi Singleton. (HBO Max)
A Lenda do Cavaleiro Verde (2021)
A partir de um célebre poema do chamado ciclo arturiano, datado do século 14 e conhecido como Sir Gawain e o Cavaleiro Verde, o diretor e roteirista estadunidense David Lowery — autor de Sombras da Vida (A Ghost Story, 2017) — realizou um épico sobrenatural e sensorial. Trata-se de um filme bem longe do convencional, convém avisar, cheio de simbolismos e com um final ambíguo. O inglês filho de indianos Dev Patel encarna o protagonista, Gawain, sobrinho do rei Arthur (Sean Harris). Boêmio, imaturo e imprudente, o jovem acaba embarcando em uma jornada de aventura e autodescobrimento após a visita do temido Cavaleiro Verde (Ralph Ineson, de A Bruxa, trabalhando sob uma combinação de maquiagem e próteses) a Camelot. Gawain é o único que topa o desafio proposto pelo visitante, menos por coragem e mais para provar que é mais do que apenas um parente do rei. Daí em diante, ele vai deparar com ladrões, fantasmas e gigantes, entre outros personagens que aludem a suas dúvidas, a suas angústias e a seus desejos. No elenco, Alicia Vikander e Joel Edgerton. (Amazon Prime Video)
Pig: A Vingança (2021)
O subtítulo acrescentado no Brasil dá a ideia de que o filme dirigido pelo estadunidense Michael Sarnoski será uma mistura de excentricidade e violência. Ainda mais que o personagem principal é vivido por Nicolas Cage, que já há um bom tempo vem encarnando tipos bizarros ou brutos. A sinopse, é verdade, também sugere um caminho trilhado outras tantas vezes pelo ator: a jornada de autodestruição, o sacrifício e a explosão de violência em busca de algum tipo de redenção. Cage interpreta o ermitão Rob, que mora em uma floresta do Oregon na companhia de uma porca. Farejadora, ela é sua companheira na procura por trufas negras, um dos fungos comestíveis mais caros do mundo. O único contato de Rob com a sociedade se dá nas quintas-feiras, quando recebe a visita de seu jovem comprador (Alex Wolff). É uma espécie de paraíso, até que acontece uma coisa que, parece, vai fazer Pig descambar para um filme do tipo John Wick. Mas não é por aí. A história traz uma surpresa atrás da outra, a cada camada mostrando mais beleza e se tornando, claro, mais profunda. (canal Telecine do Globoplay)
No Ritmo do Coração (2021)
CODA, o título original, é a sigla de Child of Deaf Adults, filho de pais surdos. Trata-se da versão da cineasta estadunidense Siân Heder para o filme francês A Família Bélier (2014). A premissa é a mesma, trocando uma fazenda por uma cidade pesqueira. A adolescente Ruby (papel de Emilia Jones) é a única ouvinte e falante entre os Rossi — todos interpretados por atores surdos: Troy Kotsur (o pai), Marlee Matlin (a mãe) e Daniel Durant (o irmãos mais velho). Atraída por um colega de escola que canta, Miles (Ferdia Walsh-Peelo), resolve se inscrever nas aulas do coral comandado pelo professor Bernardo Villalobos (o mexicano Eugenio Derbez, equilibrando humor, rabugice e ternura). A situação acabará criando um dilema doloroso para Ruby, abrindo portas para temas como amadurecimento e pertencimento. Comovente e também divertido, No Ritmo do Coração ganhou quatro troféus no Festival de Sundance do ano passado e tem sido assíduo nas premiações prévias do Oscar. Em janeiro, concorreu ao Globo de Ouro de filme dramático e ator coadjuvante (Troy Kotsur). No dia 27 de fevereiro, disputa as categorias de melhor elenco e de ator coadjuvante no SAG Awards, do Sindicato dos Atores. Em março, vai brigar pelas estatuetas da Associação dos Produtores e do Sindicato dos Roteiristas. (Amazon Prime Video)
A Noite do Fogo (2021)
Ganhou menção honrosa na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes, é um dos 15 semifinalistas do Oscar de melhor filme internacional, representando o México, e valeu a Tatiana Huezo uma indicação ao troféu do Sindicato dos Diretores dos EUA na categoria de estreante — embora ela não seja: assinou os documentários El Lugar más Pequeño (2011) e Tempestade (2016). Há semelhanças temáticas e estilísticas entre as três obras. Em A Noite do Fogo, Huezo observa o cotidiano de um povoado violentado pelo narcotráfico pelos olhos de três meninas: Ana (vivida por Ana Cristina Ordóñez González na infância e por Marya Membreño na adolescência), Maria (Blanca Itzel Pérez/Giselle Barrera Sánchez) e Paula (Camila Gaal/Alejandra Camacho). O perigo e a morte estão sempre nas redondezas, o silêncio e a fuga são aliados vitais, o medo dita os passos — sobretudo os das mães e os das filhas, como enfatiza o título brasileiro do romance em que a ficção se baseia: Reze pelas Mulheres Roubadas. (Netflix)
Titane (2021)
Julia Ducournau fez história no Festival de Cannes do ano passado. Primeiro por apresentar um filme em que a personagem principal é uma assassina serial que faz sexo com um carro — deve ter sido ousadia demais para a Academia de Hollywood, que deixou Titane de fora da lista dos 15 semifinalistas do Oscar de melhor longa internacional. Depois porque, quase 30 anos após a conquista da neozelandesa Jane Campion com O Piano (1993), a diretora e roteirista francesa tornou-se a segunda mulher na história a ganhar a Palma de Ouro. Como em Raw (2016), a cineasta tem uma jovem como protagonista e trabalha questões como identidade e sexualidade — na obra anterior, uma vegetariana que estuda Veterinária vira canibal. Para tanto, Ducournau não se furta de lançar mão de imagens perturbadoras e da violência gráfica. O corpo, seja o da atriz Agathe Rousselle, que interpreta a dançarina Alexia, seja o do ator Vincent Lindon, que encarna um bombeiro à procura do filho desaparecido, é um personagem à parte. "Eu sou muito, muito interessada em corpos. Gosto muito de filmá-los e gosto de usar os corpos dos meus personagens para falar sobre a sua psique", disse ela em entrevistas à época do lançamento de Raw. "O que adoro na gramática do terror corporal é que, se você desligar o som da TV e assistir ao filme, não só ainda entende o enredo, como também entende o que está acontecendo dentro do personagem e como ele se sente, porque é retratado em sua pele e em seu corpo." (MUBI)
A Tragédia de Macbeth (2021)
Escrita por William Shakespeare entre 1603 e 1607, Macbeth é uma peça tão atemporal no retrato que faz da ambição humana, da corrupção do poder e do peso da culpa, que está sempre ganhando novas adaptações. Após Macbeth (1948), de Orson Welles, Trono Manchado de Sangue (1957), de Akira Kurosawa, que leva a trama do rei escocês para o Japão feudal, Macbeth (1971), de Roman Polanski, Homens de Respeito (1990), de William Reilly, que se passa no submundo do crime de Nova York, e Macbeth: Ambição e Guerra (2015), de Justin Kurzel, chegou a vez da versão do estadunidense Joel Coen. É a primeira produção que ele realiza sem a companhia do irmão, Ethan Coen, com quem assinou, entre outros títulos, Barton Fink: Delírios de Hollywood (1991), Palma de Ouro em Cannes, Fargo (1996), Oscar de roteiro original e de atriz (Frances McDormand), e Onde os Fracos Não Têm Vez (2007), ganhador das estatuetas douradas de melhor filme, diretor, roteiro adaptado e ator coadjuvante (Javier Bardem).
Por um lado, em A Tragédia de Macbeth o cineasta mantém a ambientação medieval e preserva o texto original, com a linguagem poética, irônica e plena de metáforas concebida por Shakespeare. Por outro, como um reflexo de nossa época, mais inclusiva, escala um punhado de atores negros para personagens importantes — a começar pelo protagonista, Denzel Washington, e por Corey Hawkins, que interpreta Macduff. Todo o elenco saboreia as palavras e sabe encorpar o silêncio, sobretudo Washington (indicado ao Globo de Ouro e ao SAG Awards), Frances McDormand (sua esposa, Lady Macbeth), Kathryn Hunter (no papel das três bruxas que profetizam a ascensão e a queda do então heroico e virtuoso barão de Glamis) e Bertie Carvel (Banquo). A direção de fotografia, em um deslumbrante preto e branco, remete a clássicos como A Paixão de Joana d'Arc (1928), de Carl Theodor Dreyer, e O Sétimo Selo (1957), de Ingmar Bergman, enquanto a cenografia lembra o Expressionismo Alemão. E como apontou o crítico Marcelo Hessel, do site Omelete, "Joel Coen esmaga na encenação a pretensa grandeza dos homens. Seu filme, enquadrado em 4x3, está cheio de momentos que apequenam os personagens, seja nos close-ups em grande-angular, no tamanho desproporcional dos cenários, ou na solução claustrofóbica de conceber esses cenários como becos sem saída ou vias de mão única". (Apple TV+)
O Último Duelo (2021)
A exemplo do que fez o japonês Akira Kurosawa no clássico Rashomon (1950), o diretor inglês Ridley Scott mostra três pontos de vista dos mesmos fatos neste filme baseado na história real de Marguerite de Thibouville (em ótima atuação de Jodie Comer). A nobre contrariou os costumes patriarcais da sociedade medieval e pôs-se em risco ao reivindicar justiça após ser vítima de estupro. O autor da violência sexual é Jaques Le Gris (Adam Driver), outrora amigo e agora rival do marido de Marguerite, Jean de Carrouges (Matt Damon). Le Gris nega o crime e é desafiado por Carrouges para um duelo mortal, o último a ser autorizado na França da Idade Média — um combate vigoroso e extenuante em que o realizador de Gladiador (2000), Falcão Negro em Perigo (2001) e Cruzada (2005) exibe seu talento para as cenas de ação. Se em Casa Gucci, também lançado em 2021, o octogenário Scott parecia perdido, inclusive na direção do elenco, aqui ele volta a demonstrar controle das ferramentas cinematográficas. (Star+)