Como convém a um diretor cujos filmes documentam a desordem da vida familiar japonesa, o escritório de Hirokazu Kore-eda é um amontoado de papéis, livros, fotografias, fitas de vídeo e CDs. Contudo, são as dezenas de bonecos do Frankenstein espalhados pelo lugar que realmente conseguem captar seu ponto de vista emocional.
— Amo o Frankenstein. Ele é tão melancólico — declarou Kore-eda em tom reverencial.
Kore-eda, de 56 anos, é especialista em histórias sobre pessoas que enfrentam uma tristeza quase insuportável. Seu trabalho mais recente, Assunto de Família, foi indicado ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira e foi sucesso de bilheteria no Japão. A história, que recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes em maio do ano passado, retrata um grupo de marginalizados da sociedade que vivem juntos como uma família e resgatam uma menina de pais abusivos, iniciando-a no clã de pequenos roubos. Por um tempo, essa sociedade de enjeitados parece compartilhar uma conexão mais autêntica do que algumas famílias que dividem o mesmo DNA. Entretanto – alerta de spoiler –, questões éticas levam a uma ruptura devastadora no fim do filme.
Kore-eda afirma que seus filmes fazem uma crítica implícita ao Japão moderno, tocando em temas como isolamento e invisibilidade social, além de mostrar almas que se anestesiam em consequência do sucesso profissional.
Ninguém Pode Saber, um dos títulos mais conhecidos do diretor antes de Assunto de Família, conta a história de quatro crianças pequenas abandonadas pela mãe no pequeno apartamento em que moram em Tóquio. Em Pais e Filhos, que ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2013, duas famílias descobrem que os filhos de seis anos foram trocados no dia do nascimento no hospital, o que as leva a decisões agonizantes e expõe as diferenças sociais entre as famílias, deixando-as psicologicamente arrasadas.
— Não retrato pessoas ou faço filmes para que o público possa encontrar esperança facilmente. Algumas pessoas querem ver personagens que crescem e se tornam mais fortes durante o roteiro, mas não quero fazer esse tipo de filme, porque é uma mentira, e não quero contar uma mentira — esclareceu Kore-eda, durante uma entrevista no seu estúdio que fica no bairro Shibuya, em Tóquio.
O ponto de vista de Kore-eda se choca fortemente com o dos líderes japoneses. Com a economia mostrando modesto crescimento após décadas de estagnação, o primeiro-ministro Shinzo Abe, em um discurso proferido durante o encontro anual no Fórum Econômico Mundial em Davos no mês passado, elogiou o Japão por sua "economia impulsionada pela esperança" que levou o país a um "ciclo de resultados positivos há muito tempo esperado".
Essa retórica idílica contradiz os desafios demográficos enfrentados pelo país, como uma população em rápido declínio e envelhecimento e a crescente escassez de mão de obra. Além disso, menospreza a insegurança que muitos japoneses sentem em trabalhos por contrato ou de meio-período que não oferecem muitas chances de evolução profissional; mais de uma em cada seis pessoas vive na linha na pobreza. Já os que conseguem empregos em período integral normalmente enfrentam uma jornada tão extenuante que alguns estão morrendo em consequência do excesso de trabalho.
Não acho certo que governo e diretores de cinema tenham uma relação próxima, por isso eu quis manter certa distância deles.
HIROKAZU KORE-EDA
cineasta
Para combater esse cenário, Kore-eda diagnosticou uma sociedade em que os laços mais próximos estão enfraquecendo e o nacionalismo é crescente, especialmente sob o governo de direita de Abe. Por isso, quando, após receber a Palma de Ouro, o ministro da educação do Japão o convidou para um encontro congratulatório, o diretor se mostrou relutante.
— Não entendi o motivo de quererem me parabenizar. Não acho certo que governo e diretores de cinema tenham uma relação próxima, por isso eu quis manter certa distância deles — ponderou Kore-eda.
Assunto de Família foi parcialmente financiado com dinheiro público e alguns críticos acusaram o diretor nas redes socias de agir contra os interesses do país e de ser hipócrita. "Você pega o dinheiro e depois diz que prefere manter distância do governo", escreveu um blogueiro. "Que desculpa conveniente dada por um diretor usurpador", acusou pelo Twitter o comentarista conservador Tsuneyasu Takeda.
Em uma entrevista ao Mainichi Shimbun, jornal diário japonês, Kore-eda disse estar agradecido pelo dinheiro público, mas que o entende como subsídio oferecido pelos contribuintes, e não como subvenção conferida por uma determinada administração.
— Se você pensar a cultura como algo que transcende o Estado, então vai entender que as verbas culturais nem sempre coincidirão com os interesses do governo — argumentou.
ilho de um soldado que serviu no Exército Japonês de Guangdong durante a Segunda Guerra Mundial no estado fantoche de Manchukuo, na China, Kore-eda cresceu acostumado às peculiaridades de classe na própria família. Seu pai, que foi preso pelo governo soviético na Sibéria, pulou de emprego em emprego, uma anomalia no período pós-guerra em que os empregos eram estáveis.
Sua mãe, que vinha de uma família abastada, teve de sustentar os filhos quando o marido não conseguia encontrar ou manter um emprego. Ela trabalhava em uma empresa de reciclagem e em uma fábrica que produzia bolos. Kore-eda disse que suas duas irmãs mais velhas o orientaram a não falar dos empregos da mãe para não envergonhar a família.
Foi a mãe que nutriu no filho o amor pelos filmes, assistindo com ele na televisão, após a escola, a faroestes estrelados por suas atrizes favoritas, Vivien Leigh e Joan Fontaine. Mas foi o pai que, no fim das contas, apoiou Kore-eda em sua decisão de seguir a carreira artística; a mãe implorou que ele buscasse um trabalho mais estável.
Masahiro Yamada, socióloga da Universidade Chuo que escreve sobre os filmes de Kore-eda, disse que Assunto de Família faz uma crítica mordaz ao conceito tradicional de família japonesa, segundo o qual apenas as relações de sangue podem ser confiáveis. "Há muitas famílias em que os membros não se comunicam ou não têm um bom relacionamento, mas os integrantes da pseudofamília do filme se importam mais uns com os outros do que algumas famílias verdadeiras", ponderou Yamada.
Do seu jeito, os filmes de Kore-eda oferecem migalhas de otimismo, assim como momentos de humor travesso. Será que ele ainda tem esperanças em relação ao país?
Ele para e pensa por alguns instantes antes de confidenciar:
— Não deixei de acreditar.
Por Motoko Rich