
Exatos 20 anos atrás, em 12 de maio de 2005, o Festival de Cannes realizou, fora de competição, a primeira exibição do último grande filme de Woody Allen: Match Point, que concorreu ao Oscar de melhor roteiro original e atualmente está disponível no Amazon Prime Video.
Depois desse título, Allen, hoje com 89 anos, ainda lançaria belos filmes, mas acho que nenhum superou Match Point. Vicky Cristina Barcelona (2008) ganhou o Globo de Ouro de melhor comédia ou musical e deu a Penélope Cruz o Oscar de atriz coadjuvante. Por Meia-Noite em Paris (2011), o cineasta conquistou seu quarto e provavelmente último Oscar, o terceiro de melhor roteiro original, depois de vencer com Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977), que também lhe valeu a estatueta dourada de direção, e Hannah e suas Irmãs (1986).
E há o drama Blue Jasmine (2013), que deu a Cate Blanchett o Oscar de atriz e rendeu ao cineasta sua 24ª e derradeira indicação ao prêmio da Academia de Hollywood, onde as portas começaram a se fechar para ele quando voltou à tona a acusação de ter abusado sexualmente de uma filha adotiva, Dylan Farrow, quando ela tinha sete anos.
Por que Woody Allen foi cancelado?

Woody Allen foi acusado de abuso sexual por Dylan Farrow, filha adotiva do diretor e da atriz Mia Farrow. Dylan diz que sofreu o abuso em 1992, quando tinha sete anos. Ela trouxe o caso de volta à tona em 2014, em uma carta que escreveu ao jornal The New York Times.
Pesa contra Allen o fato de que a atual esposa, Soon-Yi Previn, 54, era sua enteada, com quem ele mantinha um caso extraconjugal — descoberto por Mia quando a filha adotiva tinha 19 anos.

Em janeiro de 2018, o caldo engrossou quando Dylan, em entrevista para a rede de TV CBS, questionou por que seu pai estava sendo poupado pelo movimento #MeToo, e o jornalista Richard Morgan publicou no Washington Post um artigo em que, ao vasculhar roteiros e contos nos arquivos de Allen, descreve "sua fixação por garotas" e a "objetificação do corpo feminino" por personagens de meia-idade.
Esse artigo foi bastante contestado — entre outros motivos, por se concentrar em coisas que Allen escreveu havia mais de 40 anos —, mas ajudou a encorpar a chuva ácida sobre o diretor. Paralelamente, atores e atrizes como Colin Farrell, Greta Gerwig, Mira Sorvino e Elliot Page declararam-se arrependidos por terem trabalhado com Allen; e Timothée Chalamet e Rebecca Hall, que atuaram em Um Dia de Chuva em Nova York (2019), doaram seus cachês para instituições de apoio a vítimas de abuso sexual e de incesto. (Mais tarde, em 2024, Hall voltou atrás em seu arrependimento.)

A reputação não foi a única atingida no cancelamento de Wooy Allen: ainda em 2018, a Amazon, que havia firmado um contrato para bancar e distribuir cinco filmes do diretor (o primeiro deles foi Roda Gigante, de 2017), cancelou o lançamento de Um Dia de Chuva em Nova York e rompeu o acordo. Allen processou a empresa, em uma ação de mais de US$ 68 milhões, mas os dois chegaram a um acordo no começo de novembro de 2019, com valores não divulgados.
O cineasta, que já afirmou ser "100% a favor do #MeToo", sempre rebateu as acusações de Dylan, consideradas "ridículas", e disse que Mia Farrow havia manipulado a filha. Na já citada comédia romântica Um Dia de Chuva em Nova York, Allen pareceu minimizar as acusações e o boicote que vinha sofrendo. Retratou um mundo onde os homens não são condenados e as mulheres são prostitutas ou ex-prostitutas, adúlteras ou bobas, ou apenas fantoches nas mãos do roteirista.

Ainda entre 1992 e 1993, a polícia investigou o caso, mas, por falta de provas, a promotoria não o levou adiante. O médico John M. Leventhal, depois de nove entrevistas com Dylan, concluiu que a menina teria inventado a história ou, de fato, sido influenciada pela mãe.
Filhos da atriz ficaram em trincheiras opostas: Ronan Farrow, jornalista que em 2017 revelou três casos de assédio sexual cometidos pelo produtor Harvey Weinstein, acredita em Dylan. O pai adotivo é defendido por Moses Farrow, que em seu blog A Son Speaks Out fala sobre maus-tratos e negligência por parte de Mia, relação que teria levado dois irmãos ao suicídio.

Cancelado nos Estados Unidos, Woody Allen abriu mão da aposentadoria e da reclusão para encontrar braços abertos na Europa.
Um Dia de Chuva em Nova York abriu o Festival de Cinema Americano de Deauville, na França. Rodado em San Sebastian, na Espanha, O Festival do Amor (2020) traz no elenco o austríaco Christoph Waltz, o francês Louis Garrel e os espanhóis Sergi López e Elena Anaya. E seu 50º longa-metragem, Golpe de Sorte em Paris (2023), não apenas foi produzido na França como é seu primeiro filme não falado em inglês.
O que fazer quando um ídolo é cancelado?

Woody Allen nunca foi um campeão de bilheteria nem teve aprovação unânime da crítica (e qual diretor, ator ou filme tem?), mas, principalmente nas décadas de 1970, 1980 e 1990, arregimentou e fidelizou legiões de fãs graças a títulos como O Dorminhoco (1973), Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977), Manhattan (1979), Zelig (1983), A Rosa Púrpura do Cairo (1985), Hannah e suas Irmãs (1986), Crimes e Pecados (1989), Tiros sobre a Broadway (1994) e Desconstruindo Harry (1997).
Sua obra conquistou corações e mentes graças à exploração de paixões e neuroses. Seja na comédia ou seja no drama, examinou com ironia e argúcia a natureza humana, o amor, o sentido da vida e a morte.
No total, Allen recebeu 24 indicações ao Oscar, 23 ao Bafta, da Academia Britânica, e 13 ao Globo de Ouro. E foi homenageado com um prêmio pela carreira em dois dos principais festivais do mundo: Veneza, em 1995, e Cannes, em 2002.

Quase sempre presente nos próprios filmes, mesmo que às vezes na pele de outros atores, como Kenneth Branagh em Celebridades (1998), Owen Wilson em Meia-Noite em Paris (2011) ou Larry David em Tudo Pode Dar Certo (2009), Allen é um dos principais personagens do livro de ensaio crítico e memória Monsters: A Fan's Dilemma, publicado em 2023 pela jornalista e escritora estadunidense Claire Dederer, 58 anos, e inédito no Brasil. Como resumiu o crítico e tradutor gaúcho Érico Assis em sua newsletter Virapágina, "trata do que fazer com as obras incríveis dos homens horríveis".
Segundo Dederer, condenar a celebridade cancelada sugere existir uma celebridade positiva, que não carrega manchas — vale repetir um dito famoso: "Nunca conheça seus ídolos".
A autora escreve: "A real é que nós consumirmos ou não consumirmos a obra é, em essência, um gesto ético inútil. O que fica são as emoções. O que fica é o amor. O amor pela arte, um amor que ilumina e amplia nosso mundo. Amamos querendo ou não — assim como a mancha (sobre a celebridade) também vai acontecer, queira você ou não".

Érico Assis, que estava escrevendo sobre seus sentimentos quando explodiram as denúncias de violência sexual contra o escritor britânico Neil Gaiman, o criador de Sandman, de Coraline e de Belas Maldições, entre outras histórias, refletiu: "Você deve ou não deve consumir a obra incrível do homem horrível? Consumir no sentido de comprar, mas também no sentido de fruir — ouvir, ler, assistir etc. Segundo Dederer, a decisão é absolutamente pessoal. Vai do estômago de cada um. E vai do amor de cada um.
'Dá pra separar a obra do autor?' A pergunta não é essa. A pergunta é se amar a obra incrível é amar o homem horrível. E a resposta é: Não. Se você não for um ser igualmente desprezível, você ama, no máximo, a imagem do homem. A imaculada.
Boicotar vale a pena? Afinal, o homem horrível vai continuar ganhando dinheiro para fazer suas coisas horríveis. Segundo Dederer, essa atitude geralmente é inútil".
Primeiro, diz Érico, "porque é uma ideia burguesa, de que você é um mero consumidor ou uma mera consumidora, e de que o capitalismo, comprar ou não comprar, resolve todos os problemas". E segundo por que com reações tipo "E aí, vai jogar as obras de X no lixo?", críticos viram "serviçais do capital", na definição de Claire Dederer, tirando o foco do agressor e dos sistemas que apoiam o agressor e colocando o foco no consumidor individual.
"Não existe resposta certa", escreveu Dederer. "Você não tem a responsabilidade de achar a resposta. A sensação de que você tem responsabilidade é um xibolete, um reforço do seu papel limitado, trágico, como pessoa que consome. Não existe autoridade e não deveria existir. Você é livre. Você é inconsistente. Você não precisa da grande teoria unificada a respeito do que fazer quanto ao Michael Jackson. Você é hipócrita, sempre vai ser. Você adora Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, mas não suporta ficar na frente de um quadro do Picasso. Você não é responsável por resolver essa contradição. Aliás, você não vai resolver nada por meio do consumo; a ideia de que isso é possível leva a um beco sem saída. O jeito como você consome arte não te torna uma pessoa ruim nem uma pessoa boa. Você vai ter que achar outro jeito de chegar lá."
O próprio Woody Allen perguntou se dá para separar o artista da obra em um de seus filmes mais subestimados, Poucas e Boas (1999). E essa discussão sobre nossas contradições e sobre escolhas a serem feitas casa perfeitamente com Match Point.
Por que "Match Point" é um filmaço?

O próprio Woody Allen considera Match Point (2005) um de seus melhores filmes. Certamente este suspense existencial é o mais sensual e o mais trágico — não à toa, a tradicional trilha de jazz de suas comédias românticas foi substituída por árias de ópera, gênero que sempre associou desejo sexual à fatalidade. E, em vez de Nova York, estamos em Londres.
A trama chega a ser simples: rapaz fica dividido entre suas ambições (o casamento com uma mulher rica) e seus desejos (a amante desprovida de tudo, menos de luxúria). Mas o filme tem uma força que impacta, e suas imagens perduram.
No Brasil, o título foi redundantemente batizado de Ponto Final: Match Point. Redundante e desnecessariamente: a decisão da distribuidora subestimou o conhecimento do público nacional em relação ao tênis. Vale lembrar que à época de sua estreia, em 2005, o país já tinha vivido o fenômeno Guga — Gustavo Kuerten foi tricampeão do torneio de Roland Garros (1997, 2000 e 2001), conquistou o ATP Finals de 2000 e chegou a ser o número 1 do mundo no esporte.

O protagonista é o ex-tenista Chris Wilton (Jonathan Rhys Meyers, que depois encarnaria o rei Henrique VIII em 38 episódios da série The Tudors), irlandês de origem humilde que, desde as primeiras cenas, demonstra um distorcido senso de moral: "Prefiro ter sorte a ser bom". Ao ser contratado para dar aulas em um clube, ele vê em Tom Hewett (Matthew Goode) sua porta de entrada para a alta sociedade londrina — que é arrogante, hipócrita e impiedosa.
Como em Teorema (1968), de Pier Paolo Pasolini, Chris seduz a família Hewett, que tem Brian Cox (duas vezes indicado ao Emmy de melhor ator pela série Succession) no papel do patriarca, Alec. Há uma sugestão homoerótica na aproximação a Tom, e logo ele passa a namorar a irmã dele, Chloe (Emily Mortimer). O paraíso tem uma maçã proibida: Nola (Scarlett Johansson, que em 2020 disputaria o Oscar de melhor atriz por História de um Casamento e de coadjuvante por Jojo Rabbit), uma estadunidense aspirante a atriz e, para desgosto da mãe de Tom, Eleanor (Penelope Wilton, a Anne do seriado After Life), noiva do amigo rico.

Na solução do conflito, Woody Allen mistura duas de suas influências, a tragédia grega e o romance russo do século 19. O roteiro concorrente ao Oscar não tem uma vírgula sobrando nos diálogos e retoma temas como limites morais, ganância, culpa, falta de coragem para a renúncia e existência ou não de uma justiça maior.
Na verdade, o diretor retrata o poder do acaso na vida das pessoas. Como escreveu o crítico e psicanalista Luiz Zanin Oricchio, "O acaso é terrível. Por mais que se planeje tudo, ele entra em campo em momentos cruciais e a sorte ou o azar de cada um faz toda a diferença em seu destino". Daí o uso de elementos do tênis: quando a bolinha bate na rede, dependendo de qual lado da quadra ela cair você pode ir ao céu ou ao inferno.
Mas o acaso não joga sozinho. Ao final, Allen deixa-nos praticamente a sós com a consciência do protagonista enquanto ele olha ao longe, como se examinasse as escolhas que fez.
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