Não é só com a ceia de Natal que podemos ficar empanturrados: às vezes, a positividade associada à celebração pode ser excessiva.
Para contrabalançar, fiz uma seleção de filmes que fogem da receita básica natalina, a das comédias românticas e das histórias de redenção.
Os tristes títulos abaixo (todos disponíveis no streaming) até contam com alguns personagens que encontram certo tipo de paz com eles mesmos. Mas o sabor é amargo.
A Escolha de Sofia (1982)
A lista só poderia começar com o título que virou expressão: invoca a imposição de se tomar uma decisão difícil sob pressão e enorme sacrifício pessoal. O filme dirigido por Alan J. Pakula e baseado no romance homônimo publicado em 1979 por William Styron valeu a Meryl Streep o Oscar de melhor atriz. Ela interpreta Sofia, uma polonesa que, sob acusação de contrabando, é presa com seus dois filhos pequenos, um menino e uma menina, no campo de concentração de Auschwitz, durante a Segunda Guerra Mundial. Um sádico militar nazista dá a ela a opção de salvar apenas uma das crianças da execução, ou ambas morrerão. (Telecine)
O Doce Amanhã (1997)
Vencedor do Grande Prêmio do Júri em Cannes, o cineasta egípcio naturalizado canadense Atom Egoyan concorreu a dois Oscar: melhor direção e roteiro adaptado — escrito com base no romance homônimo de Russell Banks e no conto de fadas O Flautista de Hamelin, dos Irmãos Grimm. Um acidente com ônibus escolar mata a maioria das crianças de pequena cidade da Colúmbia Britânica e provoca uma crise entre os cidadãos. Contratado para processar a empresa responsável, o advogado Mitchell Stephens (interpretado por Ian Holm) também é motivado pelo remorso que sente por sua relação tumultuada com a filha. Sarah Polley encarna uma das sobreviventes, Nicole Burnell, 15 anos, paralisada da cintura para baixo em consequência da tragédia (uma metáfora da inescapável corrupção da infância e da juventude pelo mundo adulto) e perturbada pelo que vinha acontecendo em sua família antes do acidente. (Filmicca)
Na Captura dos Friedmans (2003)
Indicado ao Oscar, o documentário de Andrew Jarecki é sobre uma família dos EUA que registrou em vídeo seu próprio desmoronamento. Mostra as investigações e o julgamento do renomado professor de piano e computação Arnold Friedman e o caçula de seus três filhos, Jesse, acusados de abusar sexualmente de dezenas de meninos nos anos 1980. O cruzamento dos depoimentos de familiares, policiais, advogados, promotores, juízes, jornalistas, ex- alunos, supostas vítimas e seus pais deixa entrevistados e espectadores perplexos. Jarecki diz: "No nível filosófico, o filme é sobre a natureza ilusória da verdade". É sobre como a memória pode ser manipulada de acordo com nossas necessidades. (HBO Max)
O Segredo de Brokeback Mountain (2005)
Brokeback é o nome da montanha onde um vaqueiro e um caubói de rodeio vivem um romance secreto. Sob direção de Ang Lee, Heath Ledger tem um desempenho inesquecível na pele de Ennis del Mar, que engole suas palavras para tentar engolir junto seus sentimentos em relação a Jack Twist (Jake Gyllenhaal). Ennis é um homem que se esconde dos outros e de si mesmo, mas, quando enfim está sozinho, permite-se um gesto delicado e doído como aquele afago na jaqueta jeans que Jack costumava usar. Ganhou três Oscar (direção, roteiro adaptado e trilha sonora) e concorreu a outros cinco, incluindo melhor filme, ator (Ledger), atriz coadjuvante (Michelle Williams) e ator coadjuvante (Gyllenhaal). (Star+)
Feliz Natal (2008)
Não se deixe enganar pelo nome. No filme dirigido por Selton Mello, o cenário é uma reunião familiar na qual explodem ressentimentos acumulados. O pavio é aceso com a chegada de Caio (Leonardo Medeiros), o filho desgarrado, recebido pelo rancor do pai (Lúcio Mauro), o torpor da mãe alcoólatra (encarnada pelo ícone Darlene Glória) e a indiferença do irmão (Paulo Guarnieri) e da cunhada (Graziella Moretto). (Looke)
Não me Abandone Jamais (2010)
Adaptação do aclamado romance de Kazuo Ishiguro, o filme dirigido por Mark Romanek acompanha, no início do século 20, a amizade entre três jovens internos de uma escola britânica. Keira Knightley, Carey Mulligan e Andrew Garfield vivem um triângulo, na medida do possível, amoroso. Seus personagens descobrem não apenas seus sentimentos amorosos mútuos, mas como lidar com um destino sombrio e predeterminado que os aguarda no futuro próximo — a história aproxima o melodrama clássico da ficção científica. (Star+)
Amor (2012)
Assim escreveu o jornalista Marcelo Perrone, em Zero Hora, quando esta obra francesa do austríaco Michael Haneke estreou nos cinemas de Porto Alegre: "Talvez seja o mais belo e corajoso filme sobre um tema em torno do qual se dá muitas voltas para não se abordar de frente — o apagar das luzes de uma relação diante da decrepitude de corpo e mente". Haneke retrata a reta final do casamento de Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva), octogenários que vivem com conforto num amplo apartamento em Paris. Apaixonados um pelo outro, eles também são devotados à música clássica. Até que a ex-professora de piano sofre um derrame que dá início ao seu progressivo definhamento. Georges se recusa a interná-la em uma clínica e decide cuidar da mulher em casa, incorporando os elementos de um novo e mórbido ritual: remédios, papinha, fraldas geriátricas, o diálogo que se transforma em monólogo, o amor que se transforma em... outra coisa. (Reserva Imovision)
Uma Mulher Alta (2019)
O filme do russo Kantemir Balagov — troféu de melhor diretor na mostra Um Certo Olhar do Festival de Canes — é inspirado no livro A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, da jornalista e escritora bielorrussa Svetlana Aleksievitch, Nobel de Literatura em 2015. A personagem do título é a taciturna Ilya, a Grandona, interpretada por Viktoria Miroshnichenko. Ela é uma jovem ex-combatente acometida por um transtorno de estresse pós-traumático. De vez em quando, trava, balbucia, fica catatônica. Ilya vive na Leningrado dos últimos meses de 1945 na companhia de outra mulher que lutou contra os alemães, agora sua colega no trabalho em um hospital para veteranos de guerra: a radiante Masha (Vasilisa Perelygina), que deseja gerar um filho como forma de se afastar da morte.
Três cenas resumem a melancolia aniquilante de Uma Mulher Alta. Em uma delas, no hospital, um personagem indaga como uma criança poderia reconhecer o latido de um cachorro — "Eles não foram todos mortos?" (e, não está dito, transformados em cães-bomba ou mesmo alimento). Em outra, Masha observa, no consultório do médico Ivanovitch (Andrey Bykov, sinistramente carismático), um porta-retrato dos filhos dele e pergunta: "São lindos. Estão vivos?". Na terceira, Ilya está brincando com um menino pequeno quando sofre um de seus ataques e acaba sufocando o garoto. (MUBI)
Laço Materno (2020)
Baseado em um caso real ocorrido em 2014, o filme do japonês Tatsushi Omori tem uma tristeza avassaladora e impregnante. Shuhei (interpretado por Sho Gunji na infância e por Daiken Okudaira na adolescência) é um menino que mora com a mãe, Akiko (Masami Nagasawa, em desempenho ao mesmo tempo cativante e revoltante). Já nas cenas iniciais, percebemos a toxicidade daquela relação. Sim, Akiko é capaz de lamber o joelho esfolado do filho e leva Shuhei para brincar na piscina, mas a ela só importa o próprio prazer. Isso inclui o vício em álcool, em cigarro e em pachinko, um típico jogo eletrônico de azar do Japão.
O comportamento errático impede que Akiko mantenha seus empregos, então ela vive pedindo dinheiro emprestado para os pais e para a irmã. Só que sua família já não tem mais paciência para lidar com a ovelha desgarrada. A situação de Shuhei piora quando Akiko conhece o igualmente inconsequente Ryo (Sadao Abe). Omori é sintético e eficaz na composição das cenas, na comunicação sem palavras, na combinação entre aquilo que vemos e aquilo que ele não mostra. E vai apertando o coração do espectador sem precisar, necessariamente, usar as mãos, usar da violência — essa é sobretudo, mas não exclusivamente, psicológica. (Netflix)
No Caminho da Cura (2021)
Na lista dos 15 semifinalistas do Oscar de melhor documentário (os indicados serão anunciados em 8 de fevereiro), o filme de Robert Greene é sobre seis homens que, na infância, foram abusados sexualmente por padres. Vale enfatizar o plural: os depoimentos evidenciam que não havia apenas uma maçã podre na Igreja Católica dos Estados Unidos, mas uma rede de pedofilia. Em jogos de beisebol ou passeios em lagos, os clérigos exibiam uns aos outros os meninos que estupravam. No presente, enquanto lutam por Justiça, os seis sobreviventes são convidados pelo diretor e por uma dramaterapeuta para criar e estrelar pequenos filmes sobre seus próprios traumas. É o processo ao qual se refere o título original, Procession. (Netflix)