Há uma grande jogada de marketing em Queer (2024), filme que estreou nesta quinta-feira (12) nos cinemas: para interpretar o protagonista, um gay tão ávido por sexo quanto emocionalmente inseguro, o diretor italiano Luca Guadagnino escalou Daniel Craig, que encarnou a versão mais bruta e fria de James Bond — um personagem célebre pela virilidade e por levar para a cama uma enorme quantidade de mulheres.
Não chega a ser uma jogada nova: em Entre Facas e Segredos (2019), antes de sua quarta e última aventura na franquia 007, Sem Tempo para Morrer (2021), o ator britânico viveu pela primeira vez o detetive Benoit Blanc — que na sequência, Glass Onion: Um Mistério Knives Out (2022), ganhou até um companheiro, em papel de Hugh Grant.
Mas é uma jogada eficiente: depois de concorrer ao Globo de Ouro de melhor ator em comédia ou musical por Entre Facas e Segredos e por Glass Onion, Craig, hoje com 56 anos, nesta semana recebeu sua terceira indicação ao prêmio concedido pela Associação de Imprensa Estrangeira em Hollywood, agora na categoria de protagonista em filme de drama.
A questão é: fora essa jogada de marketing, que já garantiu enorme visibilidade ao filme na imprensa e nas redes sociais, o que Queer tem a oferecer?
Queer é a adaptação da novela homônima escrita em 1952, mas só publicada em 1985 por William S. Burroughs (1914-1997), autor estadunidense que ficou famoso por Almoço Nu (1959), narrativa de caráter autobiográfico sobre um aspirante a escritor — William Lee — que é viciado em ópio e acaba embarcando em uma jornada delirante que inclui a tensão política em uma cidade fictícia do Marrocos, insetos gigantes e sadomasoquismo. A história virou filme de David Cronenberg, lançado no Brasil como Mistérios e Paixões (1991) e disponível na plataforma de streaming Belas Artes à La Carte.
O roteiro de Queer é assinado pelo dramaturgo californiano Justin Kuritzkes. Casado com a cineasta Celine Song, de Vidas Passadas (2023), ele colaborou com Luca Guadagnino em Rivais (2024), que soma quatro indicações ao Globo de Ouro: melhor filme e melhor atriz (Zendaya) de comédia ou musical, melhor trilha sonora e melhor canção original (Compress/Repress), ambas compostas pela dupla Trent Reznor e Atticus Ross. Oscarizados por A Rede Social (2010) e Soul (2020, com Jon Batiste), eles são novamente parceiros do diretor italiano em Queer.
Ambientada inicialmente na Cidade do México, no começo dos anos 1950, a trama tem como personagem principal o alter ego de Burroughs, William Lee, papel de Daniel Craig. Na cena de abertura, em uma mesa de bar, o protagonista está inquirindo um rapaz para saber se poderia conseguir transar com ele. Entre as tardes e noitadas de bebedeira e algumas drogas mais pesadas, convive com o amigo Joe (Jason Schwartzman), um gordinho lascivo que sempre tem pertences roubados pelos amantes que vão para a sua casa. Ou então aluga um quarto de motel para saciar sua ânsia sexual com um mexicano desconhecido, que é encarnado pelo cantor Omar Apollo.
Quando Lee depara com um jovem de óculos, cabelo engomado e corpo sarado, é tesão à primeira vista. Trata-se de Eugene Allerton, vivido por Drew Starkey, o Rafe Cameron da série Outer Banks. É um sujeito ambíguo e indiferente. Não à toa, a certa altura o personagem de Daniel Craig sugere uma comparação com o prato Alasca ao forno: quente por fora, frio por dentro. Lee fica obcecado por Eugene e vai tentar levá-lo tanto para a cama quanto para o Equador, em uma viagem à procura de yagé, outro nome dado para a ayahuasca, alucinógeno utilizado tradicionalmente na Amazônia.
A primeira parte de Queer é a mais empolgante, embora não traga muito de novo em relação à carreira de Guadagnino. Sob o calor da Cidade do México, o diretor empreende sua característica exploração do erotismo. Faz da pele de seus atores uma personagem por si só, quase sempre transpirando, retrata a libido como um doce carrasco e vê o sexo como instrumento de poder. A coleção de títulos nessa batida vai de 100 Escovadas Antes de Dormir (2005) a Rivais, passando por Me Chame pelo seu Nome (2017), Suspíria: A Dança do Medo (2018) e Até os Ossos (2022). Ainda que não haja nada explícito, há despudor nas cenas de transa, a ponto de o diretor, em uma entrevista, declarar que "há um monte de sêmen no filme".
Ironicamente, Queer perde o encanto justamente quando investe no fantástico. Há uma imagem que é mesmo bonita, a da fusão de corpos contemplada por Lee durante os efeitos da ayahuasca. Mas a passagem pelo Equador faz parecerem mais longas as duas horas e 17 minutos de duração do filme.
Queer aposta bastante no sensorial, mas o que mantém o espectador em transe é menos a droga do que a música. A trilha sonora composta por Trent Reznor e Atticus Ross é atmosférica, por vezes sensual e em outras melancólica ou aflitiva. Presente em Rivais com Pecado, faixa em espanhol do disco Fina Estampa (1994), Caetano Veloso agora canta em inglês, em uma parceria com Reznor e Ross na canção dos créditos de encerramento, Vaster Than Empires. A letra traduz bem a angústia de Lee e alude ao contexto de discriminação dos homossexuais, que era muito mais acentuada na década de 1950: "How can a man who sees and hears / Be other than sad? / How can a man who sees and feels / Be other than sad? (...) Our love will grow vaster than empires and more / The present will not tether us". Em tradução livre: Como pode um homem que vê e ouve / Ser diferente de triste? / Como pode um homem que vê e sente / Ser senão triste? (...) Nosso amor crescerá maior do que impérios e mais / O presente não nos amarrará.
O que mantém o espectador excitado é menos o corpo dos personagens do que o ouvido de Guadagnino. O diretor italiano surpreende e arrebata desde os créditos de abertura, embalados pela versão da irlandesa Sinéad O'Connor (1966-2023) para All Apologies (1993), canção do Nirvana que diz "Everyone is gay" em um dos primeiros versos e na qual Kurt Cobain (1967-1994) refletia sobre a culpa de ser ele mesmo e de não satisfazer as expectativas dos outros.
O anacronismo dita as escolhas musicais, com muita variação na época. O Nirvana aparece de novo com Come As You Are, de 1992. Depois, pode vir Musicology, lançada em 2004 por Prince (1958-2016). Ou Puzzle, canção da banda italiana Verdena que saiu em 2015.
Por causa da onipresença da música, e da sujeição da montagem a ela, por vezes o filme assume ares de uma sucessão de videoclipes. Mas há pelo menos um momento sublime: embalado por Leave me Alone (1983), do New Order, o personagem de Daniel Craig, ao aplicar uma dose de heroína na veia, encontra não o alívio ou o prazer, mas apenas um paliativo para a urgência de sua solidão.
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