Sem o devido alarde pela própria plataforma, o Max vai condenar ao limbo digital dezenas de séries, incluindo as elogiadíssimas e/ou premiadíssimas The Wire (A Escuta, 2002-2008), Angels in America (2003), Boardwalk Empire (2010-2014), Veep (2012-2019), The Night Of (2016), Chernobyl (2019), Watchmen (2019) e I May Destroy You (2020). Todas sairão de seu catálogo entre 28 de junho e 1º de julho, dentro da política econômica da Warner Bros. Discovery, dona desse serviço de streaming. Com a retirada, o conglomerado de mídia chefiado por David Zaslav não precisa pagar valores residuais para elenco e equipe técnica. Ao mesmo tempo, vê-se livre para vender seus direitos de exibição a concorrentes, como são os casos recentes de Band of Brothers (2001), A Sete Palmos (2001-2005) e True Blood (2008-2014), atualmente disponíveis na Netflix.
Torço para que todas as listadas no começo desta coluna encontrem logo um novo lar. Especialmente Watchmen, que talvez não seja tão conhecida quanto deveria, apesar dos 11 troféus conquistados no Emmy, a principal premiação da TV nos Estados Unidos: melhor minissérie, atriz (Regina King), ator coadjuvante (Yahya Abdul-Mateen II), roteiro, fotografia, edição com câmera única, figurinos de fantasia/sci-fi, música original (Trent Reznor e Atticus Ross), elenco, mixagem de som e edição de som.
Uma declaração de seu criador, Damon Lindelof, reproduzida nos extras da versão em DVD, ajuda a entender por que Watchmen pode ter ficado fora do radar de muita gente. Na convenção de cultura pop Nova York Comic Con, ele definiu a minissérie em nove episódios como "uma fanfic muito, muito cara". É uma piada para a plateia, mas toda piada tem um fundo de verdade.
Escrita por Alan Moore, desenhada por Dave Gibbons e colorizada por John Higgins, todos britânicos, a história em quadrinhos Watchmen (1986-1987) estabeleceu novo paradigma nos gibis de super-heróis, agora radicalmente humanizados, extremamente falhos e eticamente dúbios. Colecionou prêmios do mercado estadunidense — quatro Eisner, quatro Kirby, sete Harvey —, mas talvez o mais importante seja relembrar as fronteiras rompidas: recebeu o troféu da categoria Outros Formatos no Hugo, prestigiada premiação de ficção científica literária que, em 35 anos, nunca havia distinguido uma HQ, e foi o único gibi presente em uma lista da revista Time com os cem melhores romances publicados entre 1923 e 2010. Contribuíram para esses feitos a complexidade da trama — que misturou ao gênero discussões políticas, análises sobre as consequências da violência, dramas existenciais e noções de física nuclear — e a da forma: lança mão de textos complementares, como fichas policiais e laudos médicos, trocadilhos visuais, flashbacks, a técnica do mise en abyme (a narrativa dentro da narrativa)...
Cocriador dos seriados Lost (2004-2010) e The Leftovers (2014-2017), Lindelof, que hoje tem 51 anos, assume a reverência à obra de Moore, 70, e Gibbons, 75. Aliás, naquele painel da Nova York Comic Con ele enaltece a genialidade do escritor inglês, mas não cita o seu nome (que também não aparece nos créditos da minissérie), provavelmente em respeito à notória aversão de Moore às adaptações de seus quadrinhos, como os filmes Do Inferno (2001), A Liga Extraordinária (2003) e V de Vingança (2005). Seu Watchmen é, de fato, uma ficção feita por um fã: ele parte dos eventos e dos personagens do gibi para contar uma nova história, na qual espelha situações e espalha referências.
Watchmen, a HQ, perguntava: como seria o mundo se os super-heróis existissem de verdade? Watchmen, a minissérie, pergunta: como estaria o mundo 30 e poucos anos depois de tudo aquilo que foi mostrado nos quadrinhos?
Só que Lindelof não deixa a porta aberta apenas para quem conhece a HQ, republicada inúmeras vezes no Brasil e já vertida para o cinema, pelo diretor Zack Snyder, no homônimo Watchmen (2009), além de ter gerado três séries de quadrinhos que são fanfics oficiais (Antes de Watchmen, O Relógio do Juízo Final e Rohrschach). Sim, a leitura prévia vai enriquecer a experiência audiovisual; será mais fácil e divertido captar as citações (a chuva de lulas, o nome de um senador aspirante à Casa Branca), assim como algumas cenas terão um significado ou um impacto maior — como a espantosa e cruel dramatização sobre a origem de um dos super-heróis. Mas a minissérie Watchmen foi muito feliz em desenvolver uma trama central totalmente fresca e absolutamente contemporânea.
Fiel ao espírito do quadrinho, urdido sob os temores, na década de 1980, de a Guerra Fria entre Estados Unidos e a então União Soviética provocar o apocalipse nuclear, Lindelof e seu time de roteiristas refletem sobre um tema incandescente: o recrudescimento dos grupos supremacistas brancos e dos episódios de violência contra negros — como os casos George Floyd, Breonna Taylor e Andre Hill, posteriores ao programa de TV —, que esquentaram ainda mais o caldeirão das tensões raciais naquele país (e no mundo).
Watchmen começa com a reconstituição de um capítulo tão traumatizante quanto esquecido e escondido da história do racismo estadunidense: a chacina da chamada Wall Street Negra, na cidade de Tulsa, no Oklahoma, em 1921 (referenciada no recente filme Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese). O rico distrito de Greenwood foi destruído por uma multidão branca, incluindo membros da Ku Klux Klan, e mais de 300 negros morreram. Sob o silêncio de políticos e da imprensa, o terrível recado dado aos negros foi praticamente apagado dos registros locais, estaduais e nacionais. Foi somente em 1996 que o Massacre de Tulsa virou alvo de uma investigação formal no Oklahoma.
Filho de uma mãe judia e de um pai com ascendência escandinava, Lindelof sabia que não era dele a história a ser contada. Como declarou em entrevistas, cercou-se de gente com mais lugar de fala, como o diretor Stephen Williams e os roteiristas Cord Jefferson (que neste ano venceu o Oscar de roteiro original por Ficção Americana), Christal Henry e Stacy Osei-Kuffour, todos negros, a exemplo de quatro dos principais nomes do elenco: Regina King, Yahya Abdul-Mateen II, Louis Gossett Jr. e Jovan Adepo. Pessoas que, nas suas palavras, pudessem lhe dizer "Não faça assim, faça desse outro jeito". Como escolheu uma personagem negra como protagonista, Lindelof também encheu o time de mulheres: são duas diretoras (Nicole Kassell, que assina três episódios, e Steph Green) e cinco autoras.
De 1921, vamos para os dias de hoje, uma realidade alternativa em que os EUA venceram a Guerra do Vietnã (anexado como o 51º Estado), o ator Robert Redford, com uma política reparadora para com os negros, é presidente há cerca de 30 anos e a polícia usa máscara. A explicação para este último ponto surge ao longo da minissérie, mas, sem dar spoiler, vale dizer que, além de tornar tênue a linha que separa policiais, vigilantes e criminosos, a prática retoma o debate da HQ de Alan Moore sobre por que uma pessoa esconde o rosto do mundo e que tipo de comportamento pode ser desencadeado por isso.
A protagonista é interpretada por Regina King, ganhadora do Oscar de melhor atriz coadjuvante por Se a Rua Beale Falasse (2018). Sua personagem, Angela Abar, 40 e poucos anos, casada e com três filhos, aposentou a farda policial, mas segue atuando junto às forças da lei de Tulsa como a mascarada e encapuzada Sister Night. Nem ela nem seus colegas uniformizados — Looking Glass (Tim Blake Nelson), Red Scare e Pirata — existiam nos quadrinhos. Também é criação de Damon Lindelof a ameaça que enfrentam: a Sétima Kavalaria, um movimento aos moldes da Ku Klux Klan, prepara um grande ataque. A diferença em relação à organização racista da vida real é que, em vez do capuz branco e pontudo, seus integrantes adotaram a máscara de Rorschach, um dos mais populares e controversos "heróis" da HQ Watchmen — o autor da minissérie televisiva percebeu o que muitos leitores não viram ou fingem que não viram: que o personagem era um extremista, um reacionário, um preconceituoso.
Ao redor de Sister Night, gravitam os outros núcleos narrativos. Will Reeves (Louis Gossett Jr., Oscar de ator coadjuvante por A Força do Destino, morto em março, aos 87 anos) é um misterioso homem em cadeira de rodas cujo passado está ligado ao massacre de 1921. Dado como morto, o bilionário inteligentíssimo, arrogante e maquiavélico Adrian Veidt (Jeremy Irons, Oscar de melhor ator por O Reverso da Fortuna), outrora o herói Ozymandias, está recluso em um castelo encravado em uma paisagem idílica, acompanhado somente por seus criados. Laurie Blake (Jean Smart, bicampeã do Emmy de atriz em comédia pela série Hacks), que antes era a Espectral, agora é uma investigadora do FBI, a polícia federal, enviada a Tulsa após um crime chocante — e, para os leitores da HQ, é uma surpresa vê-la fazendo piadas como se fosse seu pai, o Comediante. Lady Trieu (Hong Chau, indicada ao Oscar de coadjuvante por A Baleia), outra personagem nova, é uma excêntrica e absurdamente rica cientista, dona de uma indústria de saúde e tecnologia que tem acintoso interesse em adquirir um terreno no Oklahoma.
Sobre todos, paira a sombra do Dr. Manhattan — Jon para os íntimos —, o único com superpoderes no universo de Watchmen. Uma espécie de deus azul, ele se cansou da humanidade e se exilou em Marte, para onde as pessoas mandam recados, gravados em cabines telefônicas (este é um mundo sem celular), como se fossem preces aos céus.
Um dos poderes do Dr. Manhattan é chave para a fruição de Watchmen, tanto a obra original quanto a minissérie: a capacidade de experienciar passado, presente e futuro simultaneamente. Como no gibi, há idas e vindas no tempo, revisitamos cenários, acontecimentos e personagens, sementes plantadas lá atrás reverberam lá na frente, surgem simetrias e contrastes. Essa jornada contém sequências de ação, claro, e mistérios que só são resolvidos bem adiante. E é formidavelmente temperada pela trilha sonora, que inclui canções do grupo de jazz dos anos 1930 e 1940 The Ink Spots, a Lacrimosa de Mozart e o Danúbio Azul de Strauss, covers pungentes de Life on Mars (David Bowie) e Careless Whisper (George Michael), além das músicas compostas por Atticus Ross e Trent Reznor, habituais colaboradores do cineasta David Fincher, que aqui vão da sinistra How the West Was Really Won à pulsante Nun with a Motherf*&*ing Gun.
Também como nos quadrinhos, emprega-se o mise en abyme: a American Hero Story, a série de TV dentro da série de TV, é como os Contos do Cargueiro Negro, a HQ dentro da HQ. Mas Damon Lindelof não vive só de emular Alan Moore. Sua fanfic muito, muito cara também se revela artisticamente ambiciosa e relevante. O mergulho na memória, ou melhor, a reinvenção de um personagem mais obscuro do gibi, o Justiça Encapuzada, permite à minissérie se debruçar sobre os mecanismos do racismo, sobre as máscaras sociais que os negros veem-se obrigados a vestir em nome da aceitação e sobre a hipocrisia de brancos que só encampam uma luta alheia até o ponto que lhes interessa. Nesse mesmo mergulho, em que passado, presente e futuro se misturam nas cenas, Watchmen pergunta sobre quantos heróis negros estão escondidos sob a história "oficial" e afirma: os traumas da escravidão passam de geração a geração. A dor e a raiva não se curam escondidas — estabelecendo uma conexão com o Massacre de Tulsa e um diálogo com a projeção pública do movimento Black Lives Matter e dos protestos antirracistas, o personagem Will ensina:
— Feridas precisam de ar.