Por causa da interdição temporária do Cinemark do shopping Bourbon Wallig, após um "incidente ocorrido (na noite de segunda-feira, dia 19/9) na área de transição para a entrada no complexo de salas", segundo comunicado emitido pela empresa, muitos fãs de David Bowie não conseguiram assistir ao documentário Moonage Daydream (2022), que estava em cartaz apenas naquele cinema, no IMAX, e em uma única sessão. Das sete exibições programadas, apenas quatro puderam ser realizadas. De acordo com mensagens de WhatsApp recebidas por espectadores frustrados, a rede vai projetar o filme mais três vezes, nos dias 3, 4 e 5 de outubro, às 20h (horário a confirmar). Entrei em contato com o Cinemark para ratificar a informação e estou no aguardo da resposta, mas convém você já bloquear a agenda.
Dois anos depois do famigerado Stardust (2020), Bowie (1947-2016) ganhou um filme à altura da sua genialidade e da sua personalidade. Com duas horas e 15 minutos, o documentário escrito, dirigido e editado por Brett Morgen traz o som e a visão do multiartista britânico — cantor, compositor, músico, ator, pintor, escultor, videomaker... — que embarcou todos os caras jovens em uma odisseia espacial, em uma viagem fantástica pelo mundo do rock. Traz seu amor moderno e seu convite à dança. Traz o homem das estrelas, o camaleão das muitas mudanças e o transgressor que nos que disse que poderíamos ser heróis. Traz as indagações do ser humano que, nos próprios títulos de suas canções, perguntou: existe vida em Marte? Quem eu posso ser desta vez? O que está realmente acontecendo? Onde nós estamos agora?
Batizado com o nome de um das mais aclamadas composições de Bowie, lançada em 1971, Moonage Daydream é o terceiro grande filme sobre música a estrear no Brasil em 2022. O primeiro foi Summer of Soul (exibido pelo Telecine e atualmente fora de catálogo no streaming), que ganhou o Oscar de melhor documentário ao resgatar um evento que havia sido apagado da memória "oficial". É o Harlem Cultural Festival, que, por seis finais de semana seguidos, em 1969, reuniu alguns dos maiores nomes da música negra estadunidense da época: Stevie Wonder, Nina Simone, B.B. King, Sly & the Family Stone, Gladys Knight & The Pips, The 5th Dimension... Depois, veio Elvis (em cartaz na HBO Max), a frenética cinebiografia dirigida por Baz Luhrmann, em que o protagonista encarnado pelo até então desconhecido Austin Butler assina um pacto com o Diabo: o Coronel Parker (Tom Hanks), seu empresário.
Californiano de 53 anos, o documentarista Brett Morgen tem um currículo de prestígio. Com On the Ropes (1999), concorreu ao Oscar da categoria ao acompanhar três jovens boxeadores e seu treinador. Em parceria com Nanette Burstein, assinou O Show Não Pode Parar (2002), baseado no livro de memórias (The Kid Stays in the Picture) do legendário produtor de cinema Robert Evans. Cobain: Montage of Heck (2015), reconstituição da trajetória do vocalista da banda Nirvana, que se matou em 1994, aos 27 anos, recebeu sete indicações ao Emmy, incluindo melhor documentário e melhor direção. Esse último prêmio viria por Jane: A Mãe dos Chimpanzés (2017), sobre a primatologista Jane Goodall. Para realizar Moonage Daydream, ele teve o que Gabriel Range não teve ao tentar fazer de Stardust (disponível no Telecine e para aluguel na Apple TV) um retrato da luta de David Bowie para vender, nos EUA, o disco The Man Who Sold the World (1970): acesso total ao espólio do artista. Se Range levou adiante sua ideia mesmo sem poder utilizar as músicas de Bowie (sim, é bizarro), o desafio de Morgen foi lidar com o excesso.
Em 2017, a David Bowie Estate apresentou ao cineasta mais de 5 milhões de itens, como cenas de bastidores, entrevistas na TV, desenhos, gravações, vídeos caseiros e diários, grande parte rara ou inédita. Segundo o material de divulgação, Morgen passou quatro anos montando o documentário e outros 18 meses projetando as animações, a paleta de cores e a "paisagem sonora". Esta, potencializada pelo som da sala IMAX, inclui cerca de 40 canções remasterizadas por Tony Visconti, produtor do Camaleão do Rock desde o single In the Heat of the Morning / London Bye Ta-Ta (1968) até o último álbum, Blackstar (2016), e mixadas por Paul Massey, oscarizado por Bohemian Rhapsody (2018).
Moonage Daydream é, portanto, um documentário oficial. E unilateral — afora os depoimentos e as interjeições de alguns fãs e as perguntas e os comentários de alguns jornalistas, a única voz presente no filme é a de Bowie. Essa dupla condição ajuda a explicar por que só raspa ou nem toca em assuntos não tão ou nada laudatórios, como a compulsão por sexo, o vício em cocaína e o encanto pelo fascismo — em 1976, quando encarnava sua última grande persona musical, The Thin White Duke, o cantor chegou a dizer que "Adolf Hitler foi uma das primeiras estrelas do rock".
Há, sim, um tom de hagiografia, que é sugerido nas entrevistas concedidas por Brett Morgen, um devoto confesso de David Bowie. O diretor lembra de quando, em janeiro de 2017, teve um infarto e, segundo ele diz, seu coração parou de bater durante três minutos, provocando um coma que durou cinco dias. No leito do hospital, Morgen refletiu sobre sua "vida fora de controle" e seu comportamento workaholic e pensou em Bowie, com quem havia se encontrado 10 anos antes para um projeto de filme que nunca aconteceu.
— Eu sabia que ele era esse artista incrível, mas não tinha ideia da pessoa sábia que ele era e de como eu precisava das mensagens dele — contou o cineasta para o jornalista Guilherme Genestreti, da Folha de S.Paulo, durante o Festival de Cannes, onde Moonage Daydream teve uma exibição fora de concurso.
A celebração, contudo, não fecha os olhos e os ouvidos para fragilidades e contradições do biografado. Ele fala sobre sua complicadíssima relação com a família ("Houve muita mutilação espiritual e emocional"), especialmente a mãe, contando que o trauma de uma infância sem carinho — a ponto de nunca ter tido um ursinho de pelúcia ou algo parecido, recorda — o transformou em um adulto com dificuldade para amar. A propósito: sua primeira esposa, Angie, é vista em apenas um par de fotos; o filho que teve com ela, o cineasta Duncan Jones, hoje com 51 anos, jamais é citado; o mesmo acontece com Alexandria Zahra Jones, 22, fruto de seu casamento com Iman, em 1992; mas a modelo somali merece um capítulo à parte.
O filme também flagra Bowie, um artista que dizia gostar de se colocar em situações perigosas, de "andar sobre o gelo fino", para se fortificar tanto quanto artista quanto como pessoa, tentando justificar a fase, já na década de 1980, em que se acomodou na zona de conforto do sucesso comercial. Lotava estádios, estrelava filmes de Hollywood (Labirinto) e gravava comerciais para a Pepsi. "Nunca associei pureza com pobreza", afirma, para, mais adiante, reconhecer que não estava sendo ele mesmo, não estava sendo o admirado vanguardista do rock: "Eu tenho de fazer as pessoas gostarem do que faço, e não fazer aquilo que as pessoas gostam".
Mas quando David Robert Jones estava sendo ele mesmo? Sua urgência e seu prazer em deixar de ser o garoto suburbano nascido em Brixton, bairro ao sul de Londres, para virar um personagem — Major Tom, Ziggy Stardust, Aladdin Sane, o Pierrot, The Thin White Duke... — é um dos primeiros temas abordados neste filme. Que, para ficar no cenário dos seus astronautas, alienígenas e invasores espaciais, está anos-luz de ser convencional.
Embora seja mais ou menos cronológico, o documentário não lança mão de nenhuma data, exceto o 2002 que aparece no letreiro de abertura, uma reflexão de Bowie sobre ideias do filósofo alemão Friederich Nietzsche (1844-1900). Também não se preocupa em iluminar os pontos marcantes da trajetória, nem em mostrar que o trabalho do artista nos anos 2000 e 2010 continuou sendo relevante (esse é o pecado de Brett Morgen). Não será pelo filme que, por exemplo, saberemos que o videoclipe de Ashes to Ashes dirigido pelo cantor ao lado de David Mallet foi o mais caro à época de seu lançamento, 1981, ao custo de 250 mil libras (o equivalente a quase R$ 1,5 milhão). Tampouco nos informa que Bowie morreu em 10 de janeiro de 2016, vítima de câncer no fígado, três dias depois de completar 69 anos e lançar o disco Blackstar. Moonage Daydream vai e volta no tempo, mescla, intercala ou opõe o retrato do artista quando jovem com registros de seus últimos dias, cenas de seus shows, dos filmes em que atuou (como O Homem que Caiu da Terra e Furyo: Em Nome da Honra) e da peça O Homem Elefante, conversas com a imprensa e áudios inéditos, imagens colhidas nos lugares onde morou ou que visitou com frequência: Los Angeles, Berlim, o Japão.
Se por um lado a falta de demarcação temporal e factual supõe que sejam famosos todos os lances do autor de Fame, por outro traduz cinematograficamente aquilo que o artista considera os principais ensinamentos absorvidos na época em que se interessou pelo budismo: a noção de impermanência e de transitoriedade. Em outro esforço de Brett Morgen para mimetizar o espírito inquieto e o processo criativo de seu personagem, que buscava inspiração não só na música, mas também no cinema, na literatura, na pintura, e que a certa altura recortava e colava versos que havia escrito separadamente, o documentário aposta em uma montagem maximalista. Mistura formatos e texturas, sons e imagens (várias vezes as cenas não correspondem à música ouvida; em outras, como na apresentação ao vivo de Let's Dance diante de uma multidão, acrescenta passos de dança anteriores ou futuros do cantor), David Bowie e outros artistas — aparecem, por exemplo, trechos de filmes como Viagem à Lua, Metrópolis, Um Cão Andaluz, O Sétimo Selo, Laranja Mecânica, O Império dos Sentidos e Blade Runner.
A sequência de abertura é um vibrante alerta para quem for ao cinema esperando uma biografia tradicional. Qual seria a primeira música a tocar em um documentário sobre David Bowie? Space Oddity, Changes, Life on Mars, a própria Moonage Daydream, Starman, quem sabe Heroes ou Ashes to Ashes... Nada disso: é Hallo Spaceboy (1995), e na versão remixada pela dupla eletrônica Pet Shop Boys em 1996. Seus versos — "Do you like boys and girls?", "And I want to be free" — dão a deixa para o filme, primeiro, recuperar trechos de programas de TV nos quais Bowie desconcertava (ou retrucava a ironia preconceituosa) os apresentadores ao falar de sua bissexualidade. Depois, para o artista contar que procurava transitar entre todos os espectros do masculino e do feminino, do ying e do yang, do micro ao macro, praticando a liberdade de tentar descobrir se havia um limite.
A partir daí, a nave espacial pilotada por Brett Morgen visita memórias de Bowie que começam solares mas terminam soturnas — o meio-irmão Terry foi quem apresentou o livro On the Road, de Jack Kerouac, e a música de John Coltrane, mas depois foi consumido pela esquizofrenia e passou o resto da vida internado em um hospital psiquiátrico, até se suicidar em 1985. Passeamos pela Los Angeles inóspita onde Bowie disse que precisou ser como a mosca no leite e pela Berlim onde ele e o produtor Brian Eno criaram novas formas de criar. No caminho, somos brindados por reflexões saborosas sobre o ofício — "O artista não existe, é uma imaginação das pessoas que o escutam", "A arte é para falar de por que as coisas não são iguais todos os dias e não produzem sempre os mesmos sentimentos" — e sobre como encarar a existência e a finitude: "Eu odeio desperdiçar os dias", "Eu tive uma vida incrível e adoraria repetir".
Para terminar, um aviso de utilidade pública: fique até o final dos créditos. Não apenas para ouvir as derradeiras músicas, descobrir todas as que são ouvidas e quais clássicos acabaram de fora, mas porque há um último — e bem humorado — comunicado do Major Tom.