A cada semana, a Netflix despeja toneladas de séries, muitas com enredos genéricos e qualidade duvidosa. De vez em quando, porém, surge uma obra que já no título se mostra singular e que, ao longo de seus episódios, justifica a badalação. Depois de Bebê Rena (2024), agora temos Eric (2024), minissérie em seis capítulos lançada pela plataforma de streaming na última quinta-feira (30).
Embora Eric se passe na Nova York de 1985 e Bebê Rena esteja ambientada na Londres contemporânea, as duas produções têm mais em comum do que o endereço no streaming, o formato e o título nominal.
O escocês Richard Gadd baseou-se em uma história real — a dele próprio — para criar Bebê Rena. A inglesa Abi Morgan, roteirista de A Dama de Ferro (2011) e coautora do script de Shame (2011), inspirou-se em histórias reais para escrever Eric, que tem direção de outra britânica, Lucy Forbes, das séries The End of the F***ing World e In my Skin. Morgan também recorreu a experiências pessoais, da época em que trabalhou como babá em Nova York, nos anos 1980.
Nas duas minisséries, o personagem principal é um homem do meio artístico. Em Eric, Benedict Cumberbatch, indicado ao Oscar de melhor ator por O Jogo da Imitação (2014) e Ataque dos Cães (2021), exibe seu talento e sua versatilidade ao interpretar Vincent Anderson, marionetista de um bem-sucedido programa infantil de TV à la Vila Sésamo, o Good Day Sunshine.
Nas duas minisséries, o caso policial apresentado no primeiro episódio é apenas a ponta do iceberg — à medida que a trama avança, descobrimos um drama mais grave. Em Eric, Vincent e a esposa, Cassie (a ótima Gaby Hoffmann, de Sempre em Frente e das séries Transparent e Lakers: Hora de Vencer), entram em desespero quando o filho de nove anos, Edgar (Ivan Morris Howe), desaparece a caminho do colégio. (Críticos e espectadores estadunidenses veem semelhanças com o caso de Etan Patz, um guri de seis anos que, na Nova York de 1979, sumiu quando estava para pegar o ônibus escolar. Ele foi um dos primeiros a ter sua foto estampada em embalagens de leite.)
Nas duas minisséries, logo no início a história recua no tempo, para revelar não só os passos que levaram àquela situação, mas meandros da personalidade dos envolvidos. Em Eric, que começa 48 horas após o sumiço do menino, o flashback vai mostrar como Vincent tem características incompatíveis para seus papéis no trabalho e na família. É cruel, insensível, desdenhoso, desatento, egoísta.
Nas duas minisséries, o desenvolvimento narrativo permite abordar o tema da saúde mental e questões sociais. Em Eric, observamos como a relação com os pais pode ser traumatizante e reincidente, tornando-se uma espécie de maldição. Também estão em pauta os efeitos do alcoolismo, assim como o racismo, a homofobia (naqueles tempos, a aids era chamada de "câncer gay"), o preconceito para com a população de rua, a exploração sexual, a ganância capitalista e a corrupção política. Muitos desses tópicos surgirão na investigação do caso, comandada pelo personagem mais fascinante, graças à atuação firme mas nuançada de McKinley Belcher III — é "nível Sidney Poitier", elogiou Benedict Cumberbatch. Trata-se do detetive Michael Ledroit, o único negro na delegacia chefiada pelo capitão Cripp (David Denman), onde esconde de todos um segredo.
Nas duas minisséries, o protagonista embarca em uma jornada autodestrutiva, tendo como companhia o humor autodepreciativo. Em Eric, a roteirista Abi Morgan lança mão de um recurso surreal, que justifica o título: Vincent passa a interagir com um monstro peludo com chifres e pontudos e salientes caninos inferiores. É tanto uma visualização do personagem que Edgar desenhou, querendo que o pai acrescentasse à galeria de marionetes do Good Day Sunshine, quanto uma manifestação do tormento interior do titereiro. Não chega a ser um alívio cômico, funciona mais como a voz da consciência.
Por fim, convém ao espectador das duas minisséries estar simultaneamente desprevenido e preparado. Quanto menos souber do desenrolar da trama, melhor. Ao mesmo tempo, precisa saber que, no momento em que começar a assistir, só vai conseguir parar quando terminar o último episódio.